sexta-feira, 24 de junho de 2011

Translato - Jefferson Almeida

Não me parece honesto começar o “translato” da minha experiência, sem, antes, narrar o tortuoso caminho até ela. A mim, a performance sempre pareceu surgir de um impulso pessoal. Um artista (ou um grupo de artistas) resolve comunicar o que o afeta no que tange quaisquer dos aspectos da vida (arte, vida, morte, política, filosofia, religião etc.). Logo, só me parecia possível pensar uma atitude performativa, da minha parte, dentro dessa cadeia: algo me afeta, e, por isso, escolho uma linguagem para dar forma essa afetação e, com isso, criar novas afetações.

(Quase) Todas as leituras desse curso, pareciam reforçar meu pensamento. E, com isso, gastei grande parte do curso para tentar descobrir, em mim, qual era a minha questão. O que estava me afetando e que eu traduziria através de uma provocação performática? Elenquei algumas. Chegamos, então, ao segundo ponto de crise: não bastava ter uma questão, era preciso ponderá-la e enquadrá-la (ou adequá-la) a uma performance já existente, afinal de contas, o curso se dedica a estudar e pesquisar o re-enactment, e, como sendo pouco, trabalhamos, desde um início, com um tema central, que unia todas as performances trabalhadas: a mobilidade.

Esse caminho, para mim, estava impossível. Busquei, então, outro. Qual, de todos os exemplos de performances que foram apresentados à turma, me afetou? Cheguei, então, ao meu objeto, aliás, aos meus objetos: a ação acontecida em Curitiba, em 17 de Maio de 2004 (Dia Internacional dos Museus), quando a cidade foi tomada por centenas de chaves com indicações de que seriam chaves pertencentes ao Museu de Arte Contemporânea de Curitiba (MELIM, Regina: 2008. p. 36); e, a ideia da distribuição dos Cartões do grupo Fluxus (MELIM, Regina: 2008. p. 57).


O QUE ESTÁ AO SEU LADO? O QUE ESTÁ A SUA FRENTE? O QUE ESTÁ AO SEU REDOR?

Escolhi como terreno para minhas ações, o complexo da UNIRIO localizado na Av. Pasteur, que une o CLA (Centro de Letras e Artes) e o CCH (Centro de Ciências Humanas). Preparei ambas as ações pra acontecerem na Semana da Integração Acadêmica, onde há um grande fluxo de pessoas, não necessariamente alunos da instituição. É, também, importante lembrar que, desde o início do semestre, um nicho dos alunos da Escola de Teatro convocou reuniões e organizou manifestos contra a impossibilidade de os mesmos usarem as salas da Escola para seus ensaios, devido a implantação, recente, do curso de Letras e pela quantidade de Práticas de Montagens em andamento.

Dentro deste panorama, à partir das 13h do dia 13 de Junho de 2011, comecei a “perder” chaves por todo o complexo. Nos identificadores das chaves (que eram verdes) números e nomes de salas da Escola de Teatro (Direção da Escola, Sala Cinza – cabine, Lucília Perez, 3602, 3301 etc.). Foram, ao todo, 30 chaves nomeadas espalhadas por toda UNIRIO. Simultaneamente, comecei a distribuição dos Cartões (que estavam em envelopes verdes). Nos cartões, mais de cem frases de pensadores de todas as épocas com um tema em comum: HONESTIDADE.

A honestidade era, então, o ponto de união entre as duas ações. Até que ponto os alunos (que reclamam as salas) se colocariam contra as suas vontades em detrimento de uma atitude honesta? Até que ponto os não-alunos estão dispostos a mudar os seus caminhos pela mesma razão? Será que o que estava escrito nos cartões teria potência para incutir nos alunos e não-alunos a necessidade da honestidade? Será que aquela comunidade estava disposta a mudar uma duna de lugar?

Mas, ora, se um dos conceitos fundantes da performance diz respeito a presença, “produção de presença”[1], ao corpo presente do performer no momento da ação, como enquadrar a ação das chaves nessa categoria?

Regina Melim aponta para o alargmento do termo performance, substituindo “o estereótipo que associa a noção de performance a um único formato – tendo o corpo como núcleo de expressão e investigação.” (MELIM, Regina: 2008. p. 8) Em seu texto Performance nas artes visuais, a pesquisadora pretende oferecer o uso do termo a outras formas de experiências, como produção de vídeos, instalações, desenhos, filmes, textos, fotografias, esculturas e pinturas. (IDEM) Ademais, como nos mostra o artigo O re-enactment como prática artística e pedagógica no BrasilI, da professora Tânia Alice citando Gumbrecht, na pós-modernidade há uma grande tendência a “produção de sentido” ao invés da “produção de presença”. E o sentido, não necessariamente está ligado a presença do corpo do performer, mas, da sua ação.

Indo um pouco além, a ação das chaves conta com uma ausência. A ligação do acontecimento (perda) a um performer faria cair por terra todo o sentido do trabalho. É preciso que, inclusive, o acontecimento não ganhe o status de performance enquanto acontece, ao contrário, precisa estar no campo do cotidiano. É preciso, simplesmente, que as chaves estejam “perdidas”, e, sem um dono, além da instituição que figura nos seus identificadores.

Uma pessoa que tenha encontrado uma chave e recebido o cartão, talvez ligasse uma coisa à outra. Mas, uma ação não dependia da outra, apesar de terem sido elaboradas como um circuito – entendendo circuito a partir da visão de Deleuze, em A imagem-tempo.

Três dias depois de as chaves serem perdidas, nenhuma delas havia sido retirada do lugar. Esse fato me despertou para uma segunda possibilidade de leitura da ação, a qual se refere o título deste texto: as pessoas, de fato, vêem o espaço que elas frequentam? Cerca de 30 chaves estavam espalhadas/”perdidas” por aquele lugar há três dias e não haviam sido encontradas, apesar de a Escola estar em uma semana de supermovimento. E nós, que conhecemos intimamente a Escola, sabemos que o jardim, por exemplo, está longe de ser um lugar de passagem, ao contrário, é uma espécie de área de convivência; alunos e não-alunos se encontram no jardim e nele ficam por muito tempo.

Resolvi dar um zoom na ação e “perdi” outras 50 chaves, mas, dessa vez, sem identificação. Chaves anônimas, de qualquer um. E voltar a distribuir cartões.

Entre o quarto e o quinto dias da ação (quinta e sexta-feiras) todas as chaves identificadas foram encontradas e muitas das não identificadas. Das 30 chaves identificadas, nove foram devolvidas à segurança da Escola. Das 50 chaves não identificadas 14 foram devolvidas. Algumas AINDA não foram encontradas.








[1] Expressão cunhada por Hans Ulrich GUMBRECHT em Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir.

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