sábado, 12 de junho de 2010

Re-Enactment Cut Piece - por Vanessa Reis






“ O trabalho do artista de performance é basicamente um trabalho humanista, visando libertar o homem de suas amarras condicionantes, e a arte, dos lugares comuns impostos pelo sistema.”

(Cohen, Renato, Performance como Linguagem - Ed: Perspectiva)


Foi a partir disso que me mobilizei para fazer o re-enactment de Cut Piece. Erroneamente, a princípio, fui por um viés muito simplório, achando que a performer Yoko Ono quando realizou, em 1964, Cut Piece pela primeira vez, estava apenas testando a passividade dela enquanto performer. Ao longo desses meses de aula, fui engatinhando no meu entendimento sobre a arte performática. Com o texto introdutório de Regina Melim “Performance Nas Artes Visuais” um trecho me chamou a atenção: “ a noção de espaço de performação, traduzido como aquele que insere o espectador na obra-proposição, possibilitando a criação de uma estrutura relacional ou comunicacional. Ou seja, o espaço de ação do espectador ampliando a noção de performance como um procedimento que se prolonga também no participador.” Ao ler esse trecho, e conectando à performance de Yoko, pude ver essa participação do espectador. Então, fiz minha escolha: queria testar nos dias atuais como isso se daria; qual seria minha passividade diante das pessoas + uma tesoura + o mundo hoje? Por dentro eu era só interrogações. Como seria lidar pela primeira vez com o aqui e agora da performance? E, além disso, tinha o fator imprevisibilidade. Optei por fazê-la conjuntamente com mais três colegas que também fariam a mesma reconstituição: Cláudio, Rany e Tatiane. A princípio escolhemos fazer dentro da universidade. Nossa apreensão era grande. E fazer essa experimentação dentro de um local já conhecido nos deu uma falsa segurança. Aí começavam meus equívocos: como procurar segurança em algo que não se sabe que rumo ou proporção pode tomar?! Tudo, simplesmente tudo, pode acontecer!!! No dia 3 de maio de 2010 (dia de nossa primeira experiência), lamentavelmente eu não tinha entendido isso com clareza. Sentados em bancos de plástico, um de frente para o outro, trajando roupas neutras e colocamos dois cartazes escritos “ Cut a Piece”. 1º equívoco: o certo da tradução seria CUT PIECE/pedaço cortado e não cut a piece/corte um pedaço. Dessa forma pareceu que a frase que em português significa “ pedaço cortado”, fosse como uma ordem “ corte um pedaço”. Não queríamos dar esse tom imperativo nos cartazes. Ok. Falha na hora de pensarmos os cartazes. Estávamos bem na passagem entre o prédio de Letras e Artes e o jardim. Ocupamos o centro do corredor. Na sala defronte a nós acontecia uma aula de dança. Pelo som era ballet clássico. Olhando meus demais colegas, pensei em voz alta: “Quanta solenidade!” e num misto de nervosismo e vontade de quebrar aquele clima estabelecido, comecei a conversar com eles. Ria... E eis meu 2º equívoco: não permanecer calada e concentrada. Deveria me manter concentrada como quando eu medito. Estando ali, presente, de olhos abertos e em silêncio. Falei muito. Senti-me no direito, inclusive. de trocar palavras com os espectadores. O auge de meu falatório foi mencionar diversas vezes: “estou chegando no meu limite”. Essa frase reverberou nos ouvidos dos espectadores-participantes, estimulando-os ainda mais a cortar. No decorrer dessa experiência, pude constatar a efetiva ação dos participantes. Nem liam o cartaz e se apossavam da tesoura e “cric-cric”. Éramos três mulheres e um homem. Ele foi o primeiro a ser cortado. Observei que muitos mal se perguntavam o motivo daquela performance. Simplesmente cortavam. Uns para sacanear o coleguinha que faz teatro e performance, numa tentativa cruel de banalizar e em certo ponto até desrespeitar o caminho de investigação e da descoberta artística. Minhas lágrimas rolaram quando me cortaram a primeira mecha de cabelo. Foi um pequeno tufo, mas que pra mim incomodou profundamente. Me perguntava : “Cadê os artistas? Cadê os pensadores de arte?” Tantas idéias para surgir e partia-se logo para o lugar comum: mulher-cabelo-cortar. E eu lá... soltando inconscientemente a frase do limite, tascando lenha na fogueira, estimulando os “cortadores/torturadores de plantão. O auge da tortura psicológica comigo foi quando uma mulher chegou bem perto e disse: “vou cortar sua orelha” e eu, suando frio de medo, testando o meu limite...Até que cric! Ela cortou uma outra mecha do cabelo, bem próximo a orelha. Aquilo me doeu fisicamente. Mas queria ver até onde eu iria e onde o público chegaria. Aos poucos foi se formando uma espécie de ‘platéia’. Algumas pessoas paravam e assistiam. Ficaram minutos e minutos por ali, enquanto meu colega Cláudio era despido numa curiosidade quase sexual. Rany também era ‘torturada’ com ameaças de corte em seu cabelo, que mais tarde se concretizou. Tiraram boa parte de seu rabo de cavalo. Fui a primeira a me retirar da performance. O último corte foi no meu top. Bem na frente. Eu já estava de calças recortadas. Quase semi-nua. Por achar que meu propósito definitivamente não era ficar nua para ver a reação dos outros, optei por encerrar minha participação ali. Confesso que me vi um pouco perdida diante do resultado dessa primeira experimentação. Outras aulas vieram, até que Tania nos indicou o documentário “US. X John Lennon”. Se o tivesse assistido antes dessa primeira experiência, me atentaria para o fato de que Yoko NÃO estava com uma questão egoísta de meramente se testar enquanto performer. Assistir ao filme me deu uma outra dimensão do que é performar. Bateu uma sensação de total equívoco, pois só então entendi que Yoko Ono estava, na época, fazendo uma ação humanitária. Tinha todo um porquê político na escolha de Cut Piece. Lendo outros textos da matéria de ATAT, minha mente foi se abrindo cada vez mais para a verdadeira questão de performar. O texto “Estética Relacional” de Nicolas Bourriaud foi imprescindível para que eu percebesse a ligação da arte com a sociedade, com novas maneiras de ver o “sujeito”, outros caminhos para o homem se relacionar. Ele diz: “O interstício é um espaço de relações humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema.” Cita ainda: “a arte produz uma socialidade específica...a arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relações.” E quando Yoko sentou-se, em 1964, com uma tesoura, ela queria problematizar as relações; mais especificamente estava ali para por em questão a guerra do Vietnã. Ao refazer em 2001 a questão já se modificou. Era o 11 de Setembro. Interessante após 40 anos ela refazer. Tive minha segunda experiência já com uma nova noção: a de que não iria “reperformar” somente para me testar. Quando penso nisso hoje, sinto até vergonha de ter reduzido o papel da performance a isso. Escolhí reconstituir para mostrar o quanto as pessoas estão apáticas perante a violência. Refazer Cut Piece é um pedaço do tempo que RE-cortei. A passividade existe? Sim. Através do sentimento anestesiado da sociedade atual. Em comparação à 64 o que mudou? Muitas coisas. O receptor mudou. Pensamentos sobre diversos temas mudaram. Só uma coisa petrificou: a violência. Esta, aumentou exageradamente, e de diversas maneiras, em sentido bem amplo. A força que tem refazer Cut Piece hoje é mostrar que, se algo modificou, foi para pior. Uma violência gratuita quase animalesca muito presente no ser humano. A violência se manifesta como uma potência fortíssima, mostrando a crueldade do homem contemporâneo. Logo, ao reperformar Cut Piece percebo que alguns aspectos ainda não progrediram. Muito antagônico. Estamos em pleno séc.XXI, vive-se a Era tecnológica, o homem praticamente substituído por máquinas, mentes pensantes e... o quesito paz onde fica? A atitude da humanidade hoje é anestésica, numa surpreendente atitude “blasé”, através da quase invisibilidade, da ignorância consciente perante o que está acontecendo à sua volta, é que defino a minha segunda experiência. Dessa vez ainda feita em grupo: Flaviane, Tati e eu fomos para o IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais na UFRJ). Ficamos no pátio central, ao redor das salas de aula. Chegamos lá pela manhã, por volta das dez horas. Alguns poucos alunos por ali. O frio na barriga era ainda maior. E, pra minha surpresa, a reação das pessoas foi muito diferente! Não poderia imaginar que pudessem agir assim. Uns passavam e nem nos olhava. Outros olhavam rapidamente, sem dar importância. Três pessoas sentadas de preto no pátio de uma faculdade. Outros poucos olhavam... olhavam... Podiamos perceber a curiosidade percorrendo suas mentes. O máximo que faziam era perguntar para o Nilson, nosso amigo que fez os registros, o que estava acontecendo. Sofrí duas interferências: um rapaz cortou o pequeno cartaz (que dessa vez estava grafado corretamente), e um outro deu um “pic” na minha camiseta. Apenas um único estudante sentou-se diante de nós e tentou um diálogo. Dessa vez me mantive concentrada e calada. Ele nos avistou e foi se aproximando. Sorria, coçava o queixo...Até que puxou uma cadeira (havia mesas e cadeiras no pátio), e sentou-se. Perguntou-nos se aquilo era algum tipo de protesto religioso, alguma pesquisa sociológica...E ficou ali divagando sobre o que poderia ser. Finalmente agiu. Tinha uma garrafinha d’água ao meu lado, e ele bebeu um pouco. Ao beber tentou ainda alguma interação comigo. Tentou me provocar falando: “o que acontece se eu levar sua garrafa de água?” Depois sentou novamente e nos contou que o que fazíamos tinha alguma relação com as pessoas ‘invisíveis’. Certamente disse isso por ver que as demais pessoas passavam por nós e nem nos olhava. Comparou nosso “protesto silencioso” com a falta de educação de muitos ali que não cumprimentavam os funcionários da limpeza, os seguranças. E fez questão de dizer que ele era um dos raros que ainda cumprimentava. Como bem diz Bourriaud: “A arte é um estado de encontro fortuito”. Pude ver um modelo de socialidade presente tanto na UniRio quanto no IFCS. Lançando mão da arte, estabelecí relações bastante distintas em ambos os lugares. A intensa participação de alguns e o extremo desprezo de outros. Na primeira fiquei, ao final, de calcinha e top rasgado; na outra, apenas um corte em uma das mangas da camiseta. Enfim, a performance tem como material transformador a maneira de pensar o homem, a sociedade atual. No geral, foi uma experiência interessante, que me gerou inúmeras questões: o que fazer para despotencializar a violência no homem? Ou ainda: como lidar com ela e transformá-la em algo positivo? Tais questionamentos me dão mais e mais vontade de mergulhar nesse espaço relacional fascinante que é performar!

http//www.youtube.com/watch?v=xSS8UHWqHqE

Um comentário:

  1. Bom trabalho, principalmente no que diz respeito a descoberta da conexao do performer com a realidade social e política... Da mesma forma que a performance de Yoko Ono tinha um significado preciso em cada momento em que foi realizada (a cada vez), a açao do performer é interconectada com a realidade social e politica e é disso que ela tira sua potência e força subversiva. Importante descoberta que permite perpassar os limites de nossas ficticias "identidades" que também sao construçoes sociais...

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