terça-feira, 8 de junho de 2010

Kardinal

1ª PARTE


“A arte é frequentemente criada por pessoas que tentam fazer com que a sua ideia, emoção, coisa imaginada, esteja mais aqui. Eu desejaria que meu imaginário fosse uma ocasião para que o não imaginado por mim pudesse estar presente.”

(Richard Foreman, “Plays and Manifestos. New York University Press. NY., 1976)


Kardinal

Otto Muehl

Viena, 1967

O comportamento social não inclui a lucidez. Pelo contrário, seu caráter mecânico não reconhece, não valoriza a criatividade. O “teatro burguês” parece reforçar esse comportamento, uma vez que, ao arrancar aplausos, cria a identificação.

Diante da performance, o espectador estranha aquilo que ele não consegue ver nele mesmo. Não há, portanto, identificação. Nela, o corpo do artista é a matéria-prima de sua arte.

Final dos anos 60. Nesta época, a Áustria nos oferece Otto Muehl em contundentes performances. As cicatrizes deixadas por contínuos conflitos mergulham o país em intenso conservadorismo. É neste cenário que Otto se expõe para denunciar à consciência das pessoas a extrema violência em que viviam. O ato violento contra o próprio corpo não pode ser visto, portanto, como algo isolado, provido de sadomasoquismo – como diria uma análise superficial – mas como uma busca de consciência do que acontece com todos. Peter Weibel, citado no artigo “O Ataque ao Corpo na Body Art”, de Priscilla Ramos da Silva, diz: “Se um artista se golpeia, isso não significa que um público sádico está assistindo a um artista masoquista. O problema deve ser visto em outro nível, um no qual ambos estão expostos ao golpe. Porque o artista exposto pode ser um substituto para o público ou até mesmo para toda a humanidade. A exposição pessoal ao perigo em um contexto artístico possui uma qualidade semiótica/simbólica no fluxo do processo artístico, que vai além do sadomasoquismo. (...) O artista se expõe ao perigo (...) para aumentar a provocação da arte, para liberar a consciência das pessoas.” [1]

Otto Muehl viveu o Acionismo Vienense, que se constituiu de um grupo fechado, comunitário e se desenvolveu em Viena, entre 1965 e 1970, como uma experiência existencial. Este movimento caracterizou-se por uma forma agressiva de trabalhar o corpo, negando, assim, a estética, o artista e a própria arte. A esse respeito, Marina Abramovic reforçaria, mais tarde: “Para mim, a estética é como a maquiagem que a mulher usa de manhã ou o papel bonito que você embrulha um presente para dar a alguém, quero dizer, é bom, mas não é a essência do mundo. A arte pode ser muito mais do que isso, pode ser política e social, perturbadora e espiritual, e prever o futuro. Só assim a arte terá a chance de sobreviver em outros séculos, de sobreviver através do tempo. Senão, é criado algo que se vai, algo que vemos e depois esquecemos. É por isto que prever o futuro é também o trabalho do artista”. [2]

A importância do Acionismo Vienense foi muito grande na época, e suas influências se estendem até a atualidade, pois conseguiu “prever o futuro”. No caso de Otto Muehl, especificamente, a opção pelo registro cinematográfico de grande parte de sua obra, mais do que apenas registrar seu trabalho, parece revelar a consciência de que sua atuação poderia repercutir em contextos futuros, uma vez que Muehl privilegia encarar a questão local como atributo humano universal. Assim, através de seus filmes, a atualidade de seu gesto de performer e sua intenção artística se mantêm permanentes. Vejamos a indagação de Luiz Cláudio da Costa: “Pode a obra atuar simultaneamente na atualidade e na virtualidade? Não estaria o registro, no espaço da experiência estético-poética contemporânea, conformando um problema filosófico: a possibilidade de um evento passar e, ao mesmo tempo, permanecer?” [3]


2ª PARTE

“Fazer arte, (suponho que com todo o mundo se dê o mesmo) é meter-se em um problema."

(Richard Foreman, “Plays and Manifestos”. New York University Press. NY., 1976)


Kardinal


Nilson Andrade

Rio de Janeiro, 2010


Diante de uma performance, as possibilidades de reação/entendimento, enfim, de significação são múltiplas. Os indivíduos são múltiplos, e a performance oferece caminhos para que cada um se encontre ali – dentro daquela realização –, de uma forma específica.

Em KARDINAL, estas possibilidades se apresentaram a mim com a multiplicidade que a própria definição de performance sugere. Não vi apenas uma possibilidade. A primeira interpretação me revelava o sistema calando o indivíduo, jogando sobre ele tudo que escondesse seu rosto, sua individualidade e, por consequência, sua própria identidade.

De 1967 até aqui, KARDINAL só vem se atualizando. As questões que levanta estão, hoje, tão incorporadas ao comportamento do homem comum que ele, distanciando-se de seu eu pessoal, acomodou-se definitivamente, convertendo-se em massa. Todo o seu comportamento nos revela este ser inerte, dominado pelo que esperam dele. Toda a informação que chega a ele, através da mídia, não pode ser discutida. Não há interlocução na mídia; portanto, o que há é a repressão de toda expressão de espontaneidade. Como bem declara RoseLee Goldberg: ... os instintos agressivos da humanidade tinham sido reprimidos pela mídia. Até mesmo o ritual de matar animais, tão natural para o homem primitivo, fora eliminado da experiência moderna. Esses atos ritualizados eram um meio de libertar essa energia reprimida, bem como um ato de purificação e redenção por meio do sofrimento.” [4]

A partir da constatação de que a performance não tem significado único nem para a mesma pessoa, busquei re-significá-la com a proposta de re-atualizá-la, ritualizando o trabalho de Muehl. Na “re-enactment-ação” de KARDINAL, servi-me das potências sonoras do músico francês Olivier Messiaen. Sua obra, performática por natureza, “celebra o homem e o condena, que na sua consumação o enaltece e que na tragicidade pungente que lhe é intrínseca decreta a necessidade da sua ultrapassagem; uma música sumamente humana, mas para lá de todos os equívocos do humanismo...”. [5]

Sobrepus à música original do filme a introdução da obra Turangalila-Symphonie ”, de Messiaen, com o objetivo de expressar, através de uma massa sonora, a mesma sensação de embotamento. A superposição de sons expressa o amorfismo que a massa possui. Tudo ganha o sentido de metáfora.

O material utilizado por mim deveria comportar algo que tivesse o significado de “calar” o indivíduo. Se “indivíduo” é o que não pode ser dividido, aqui, o in-divíduo é aquele que, diante de si mesmo, não existe inteiro, mas fragmentado. O que existe como seu espelho é aquilo que a mídia lhe impõe: fios, periféricos de computador, válvulas, teclas e, neste arsenal, as logomarcas conhecidas dos meios de comunicação e os nomes daquilo que elas produzem e que constroem a divisão desse iN-di/ví(du)-o, alienado de si mesmo, longe da sua inteireza.

A segunda parte do filme mostra três corpos que se revezam num mesmo espaço, procurando um lugar que é ocupado incessantemente pelo outro, pelo outro e pelo outro. Optei por manter o registro original neste segundo momento, apenas dando o mesmo tratamento de “filme antigo”, como na primeira parte, por entender que, qualquer que fosse a re-significação dos elementos que anulam o indivíduo na primeira parte do filme, a segunda manteria a mesma força, ou seja, a de denunciar que, diante da anulação da consciência de ser no mundo, o indivíduo, indiviso, não tem mais lugar. Foi exatamente isto que me motivou a escolher esta possibilidade de re-significar o/a “filme de artista[6]/performance” KARDINAL.


Notas:




[1] Publicado no site

www.iar.unicamp.br/extensao/aperfartesvisuais/priscilla01.pdf, acessado em 11/05/2010.

[2] Entrevista publicada no site

www.dasartes.com/revista/02/marina_abramovic.php, acessado em 28/05/2010.

[3] COSTA, Luiz Cláudio da, Dispositivos de Registro na Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009 p. 30

[4] GOLDBERG, RoseLee, A Arte da Performance – do Futurismo ao Presente. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2006 p. 154.

[5] Ensaio crítico de Paulo Carvalho, publicado em “Crítica: Revista de Filosofia”, no site http://criticanarede.com/mus_fimdostempos.html, acessado em 22/05/2010.

[6] Em “Dispositivos de Registro na Arte Contemporânea”, de Luiz Cláudio da Costa, Contra Capa, RJ, 2009, página 18, lemos:“... a organizadora Ligia Canongia cunha o termo “cinema de artista” para afirmar a heterogeneidade e as interferências das práticas como força específica.”.

Um comentário:

  1. excelente trabalho que aborda a questao do complemento na prática de re-enactment. como resignificar e completar, como fornecer dados, leituras, atravessamentos novos? é uma das questoes que seu trabalho coloca de forma muito pertinente. como a exploracao da matéria sonora pode vir a criar novos sentidos, novas densidades? é uma das questoes interessantes abordadas na sua prática...

    ResponderExcluir