Em busca de uma performance inspiradora para fazer um re-enactment, comecei uma pesquisa por artistas, até que cheguei a Allan Kaprow, artista que originou a expressão happening. Fiquei extremamente interessada pelo trabalho que começara a desenvolver no final da década de 50, e seu papel como um dos pioneiros na arte performática. O trabalho de Kaprow consiste, em parte, na criação de espaços, com materiais que despertem memórias ou ligações com o quotidiano, produzindo um contexto novo de sentidos onde o espectador é integrado. Ele opera sobre um leque de materiais muito variado, como elementos até então exteriores à arte tais como plásticos, roupas, brinquedos, fotografias, etc. Kaprow entende estes elementos extraídos do quotidiano, do contexto urbano, como materiais que constituem a subjetividade da própria obra de arte.
O método utilizado por Kaprow para organizar e selecionar esses materiais deriva de operações de acaso, ou seja, ele tira partido de procedimentos aleatórios como uma forma de questionar e perturbar padrões de composição convencionais. O próprio espaço físico onde se realizam seus trabalhos são lugares do quotidiano: a rua, a natureza ou espaços não-convencionais.
“A Happening is an assemblage of events performed or perceived in more than one
time and place. Its material environments may be constructed, taken over directly from what is available, or altered slightly; just as its activities may be invented or commonplace. A Happening, unlike a stage play, may occur at a supermarket, driving along a highway, under a pile of rags, and in a friend’s kitchen, either at once or sequentially. If sequentially, time may extend to more than a year. The Happening is performed according to plan but without rehearsal, audience, or repetition. It is art but seems closer to life.”
Giveaway de Kaprow: Pratos deixados na rua; Fotografados; Retorno no dia seguinte; Fotografar. A simplicidade e a sutileza desse trabalho me deixaram impressionada. Num primeiro momento veio a questão: Qual é o significado de um prato no meio da no meio do meu trajeto, em um lugar completamente inusitado? Poderia mudar o meu olhar em relação ao espaço pelo qual eu passo diariamente, mudaria a minha rotina. E os outros transeuntes? Incomodariam-se? Esboçariam eles alguma reação? Traria a eles alguma questão? Então eu decidi fazê-lo, com a mesma poética de Kaprow ,mas,no entanto, dentro do meu cotidiano, no meu itinerário de casa à Unirio.
Primeiro dia. Não haviam lugares pré-determinados para a colocação dos pratos, apenas o caminho. O primeiro prato foi colocado no chão, no meio de uma calçada pequena. Comecei a experimentar alguns lugares que não tinha o costume de sequer olhar, mas que naquele momento pareciam interessantes. Posso dizer então que a proposta já estava funcionando, em mim. Quando estava me aproximando do ponto de ônibus, ainda no meu bairro, comecei a perceber que haviam algumas pessoas paradas, esperando para ver o que eu faria, onde colocaria o próximo prato. O curioso é que eu não havia imaginado que a ação de colocar pratos no espaço urbano traria curiosos. Chegando em Botafogo, continuei a colocá-los até a Unirio. No dia seguinte, fazendo o mesmo percurso, não fora encontrado nenhum prato no mesmo lugar. Todos os pratos desapareceram, com a exceção de um, que fora jogado dentro de um canteiro. Objetivo alcançado: Se os pratos não estavam no mesmo lugar, alguém tirou.
A performance Giveway de Kaprow, que acontecera no ano de 1969, nos EUA, se afasta visivelmente de sua reconstrução no Rio de Janeiro, Brasil. A diferença de época, de clima, de sociedade e cultura, geram resultados múltiplos. “A atividade artística constitui não uma essência imutável, mas um jogo cujas formas, modalidades e funções evoluem conforme as épocas e os contextos sociais”(Bourriaud, 2009).
O que estava em questão para Kaprow, era a função da arte na sociedade, e o conceito de arte em si, considerando-a viável ao nível da participação empenhada do espectador e da experiência vivida. Os materiais do quotidiano e a experiência são, para Kaprow, o caminho pelo qual a arte seria integrada na vida comum. Na verdade, o que Kaprow inteligentemente constrói é uma estratégia de indefinição: indefinição entre o que é arte e o que é vida, entre o que é um artista e o que não é.
A partir dos anos noventa, esse desejo de ampliar os limites da arte não está mais em voga. Hoje, a arte forma essas “relações de convívio” dentro de uma nova problemática, onde testa-se sua capacidade de resistência dentro de uma sociedade globalizada. “Assim, a partir de um mesmo conjunto de praticas, vemos surgir duas problemáticas totalmente diversas: ontem,a insistência sobra as relações internas do mundo artístico[...]; hoje, a ênfase sobre as relações externas numa cultura eclética [...]”(Bourriaud, 2009)). Dessa forma, o fato de deixar pratos em lugares aleatórios em 1969 era algo extremamente questionador, e reinvindicava um novo papel para a arte, enquanto que hoje, Giveaway perdeu seu papel transformador.
Bibliografia
BOURRIAUD, Nicolas. "Estética relacional". Trad. Denise Bohman. São Paulo, Martins Fontes, 2009.
Interessante re-enactment e interessante reflexao sobre a transformaçao das modalidades nas relaçoes sociais. O desvincular com as questoes do mundo artístico acaba aproximando - paradoxalmente, já que isso era uma das primeiras buscas realizadas pela linguagem performática - a arte da vida...
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