segunda-feira, 14 de junho de 2010

Orlan, Operation-Ópera

Orlan é uma artista multimídia francesa que enveredou pela body art nos anos 70, quando precisou subitamente ser operada e decidiu aproveitar ao máximo essa situação. Vídeos e fotos desse momento foram exibidos como se tal evento tivesse sido uma performance planejada. O momento era oportuno, artistas de todas as partes do mundo e das mais variadas áreas questionavam a capa de formalidade que envolvia a produção artística, assim, a maneira encontrada para tal confronto foi a ação performática e a body art, que utilizaria o corpo como objeto artístico em si, pondo abaixo as barreiras entre a arte e a vida com experiências visuais e sensoriais. Esses artistas viriam a representar o sentimento de angústia e a desorientação individual na virada do século. O corpo é o primeiro comunicador do gênero, da raça e da classe. A body-art reflete, portanto, a crise existente na sociedade contemporânea. Esses artistas usam seus corpos para manchar e cruzar os limites e para explorar suas implicações na identidade. A quem pertence este corpo que visto? Quem fala através dele?

Segundo Foucault, o corpo foi o primeiro objeto a ser socializado no capitalismo que se desenvolveu a partir dos fins do séc.XVIII e início do séc.XIX. O corpo enquanto força de produção, força de trabalho. Para ele, o controle da sociedade sobre os indivíduos não se operou pela consciência ou pela ideologia, mas no e com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que a sociedade capitalista investiu. Considera o corpo como uma realidade bio-política.

Há uma questão com os limites e toda uma máquina a serviço da transposição. Transposição dos limites corporais. Há uma banalização das práticas cirúrgicas. Essas intervenções em série revelam uma alienação do próprio corpo, uma entrega do corpo aos padrões estandardizados de beleza e conforto corporal. As forças que habitam esses corpos são ignoradas, as marcas que cada um traz, seus movimentos desejantes naufragam diante de uma corrida frenética em direção a um fora de si. Figuras clínicas vão se multiplicando aos nossos olhos, buscando os limites, por vezes desesperadamente. Há quadros sombrios que desfilam pelas ruas, pelas passarelas, pelos consultórios, onde parece haver um excesso de carnalidade, de crueza da carne. Paralelamente, há também boas saídas para o prazer. "Não houve época que não se sentisse, no sentido mais excêntrico, 'moderna', nem se considerasse à borda de um abismo", diz Walter Benjamim, e nesse sentido, não cabem alarmismos. Perderíamos nossa capacidade de análise. Toda época e toda mudança, e é inegavelmente uma época de mudanças, traz suas quebras.

Como situar um corpo banalizado por forças mercadológicas, transformado em recurso a ser utilizado, mercantilizado, origem de todo pecado disfarçado nos preconceitos presentes nas sociedades latino-cristãs? Somos afetados e atravessados por essas situações cotidianas, nos encontramos em um território comum, nos movendo por um longo e inquietante percurso no imaginário do corpo na cultura contemporânea. Nos perguntamos o que vem sendo veiculado pelos corpos. Retornamos ao mais primário do ser e à primeira das perguntas, possivelmente ecoando algo mais coletivo do momento: como se dá a relação sujeito-corpo e quais as metáforas que a época oferece para esta relação? A anorexia, a bulimia e a obesidade estariam buscando desesperadamente os limites ou denunciando com o próprio corpo o esgarçamento desse tecido, a solidão desses corpos, demasiadamente corpos, onde nada barra, nada castra, nada contém?

E nesse sentido Orlan nos põe a refletir. O corpo da artista é o suporte de sua produção. Interroga o estatuto do corpo e do corpo feminino, desnuda a relação Eu-imagem-corpo. Seu trabalho enfoca questões da ordem do corpo, do desejo e da identidade, denunciando comportamentos consumistas e autodestrutivos. Toca nos limites do corpo, na fronteira corpo-sujeito. Nos manifesta os gritos da estética vivida no corpo da atualidade. Seu corpo-carne se transforma em coisa a ser recortada e recosturada, sem dor, como corpo-coisa a serviço da imagem, de um ideal, de um ilimitado. Faz das manipulações sobre a carne viva de seu corpo performances artísticas, manifesto e muito barulho. Toma sua carne como argila, o sangue como tinta, escritos psicanalíticos como recitais e as mãos dos médicos como operadores. Com seu Manifesto da Arte Carnal, interroga: o que podemos ser se nossos corpos deixam de ser o que são?



Alguns trechos do Manifesto da Arte Carnal:

"DEFINIÇÃO: A Arte Carnal é um trabalho de auto-retrato (...). Oscila entre desfiguração e refiguração. Inscreve-se na carne porque nossa época lhe dá esta possibilidade..."

"DISTINÇÃO: A Arte Carnal não se interessa pelo resultado plástico final, mas pela operação-cirúrgica-performace e ao corpo modificado, tornado lugar de debate público."

"ATEÍSMO: A Arte Carnal transforma o corpo em língua e reverte o princípio cristão do verbo que se faz carne em proveito da carne feita verbo.”

"PERCEPÇÃO: De fora posso ver meu próprio corpo aberto sem sofrer. Posso me ver até o fundo das entranhas, novo estágio do espelho."

"LIBERDADE: A Arte Carnal afirma a liberdade individual do artista e nesse sentido luta também contra os aprioris, os ditados: porque se inscreve no social, na mídia (onde faz escândalo porque mexe com o senso comum) e irá até o judicial."

"ESTILO: A Arte Carnal é anti-formalista e anti-conformista."



Se a identidade tem ancoragem no corpo e na imagem, Orlan levanta a âncora e vai navegar por mares desconhecidos. Nômade em seu próprio corpo, não haveria um ponto de ancoragem, mas muitos diferentes. Brinca com as certezas sobre sua identidade: em Orlan há muitos corpos, como em Fernando Pessoa muitos Eus.

Considerando tais pensamentos, decidi reconstituir a performance Operation-Ópera, onde Orlan reconstrui seu rosto com base em mitos de beleza feminina como os olhos de Psiquê, o nariz de Diana, a boca de Europa, a fronte de Monalisa, o queixo de Vênus ao longo de nove cirurgias - uma delas transmitida de Nova Iorque a 13 centros de arte no mundo, com o título "Omnipresença" - cujos ambientes eram complexos e contavam com músicos e poetas que intervinham no processo. Minha performance ocorreu como um rito de passagem, uma celebração devido a saída da minha zona de conforto, o momento de descontinuidade gerador da possibilidade de criação de uma nova percepção, através da transformação do meu corpo em campo de batalha, objeto de estudo, de onde emergem questionamentos acerca da padronização da estética, principalmente a estética feminina; e da relação corpo-sujeito tão ligada às conveniências das relações humanas.








Optei por raspar meus cabelos como forma de aproximação da essência da performance original. E no momento que os fios começaram a cair, li o mesmo trecho do livro La Robe, de Eugenie Lemoine-Luccioni, com o qual Orlan inicia suas cirúrgias-performances. “A pele é enganosa...na vida, nós só temos nossa própria pele...há um equívoco nas relações humanas pois jamais somos o que temos...eu tenho uma pele de anjo mas sou um chacal...uma pele de crocodilo mas sou uma boneca de pelúcia, uma pele negra mas sou branco, uma pele de mulher mas sou um homem; eu nunca tenho a pele do que sou. Não existe exceção à regra pois nunca sou o que tenho”.





Um computador captava e exibia as imagens simultaneamente em um site na Internet, cujos expectadores não sabiam o que iriam ver ao participarem do chat. Ao todo, cinco pessoas ao redor do mundo assistiram a ação, apenas uma se manifestou escrevendo uma saudação. Escolhi fazer minha performance às portas da sala Glauce Rocha no jardim do CLA da Unirio, por enxergar no estar do lado de fora de uma sala de espetáculo o viés de anti-formalidade, anti-conformidade e subversão pretendido; bem como a música de Anacleto de Medeiros (1866-1907), maestro negro, famoso pelo seu trabalho a frente da banda do Corpo de Bombeiros, posteriormente afastado da corporação por compor uma música sobre a Guerra de Canudos. A canção escolhida remetia ao universo do circo, que também consta em sua criação a subversão, posto que se constituía de exibições de cavalos e corridas, batalhas encenadas, shows de animais adestrados, malabaristas e acrobatas, todos originários do treinamento nas academias militares.

Lancei mão de bexigas coloridas presas sobre fragmentos do Manifesto da Arte Carnal que balançavam ao vento como que esperando que os ventos espalhassem a mensagem. Tanto o posicionamento como a presença das bexigas remontam os banquetes antigos. Onde uma bexiga animal cheia de miúdos era posta em cima da carne que assava para ser defumada e assim servir de oferenda e pedido de fartura (no caso da minha performance o pedido era de fartura de novas percepções, novos conhecimentos). Na minha ação as bexigas que continham substantivos – “obscuridade”, “formalidades”, entre outros - inscritos foram estouradas, dando a idéia de libertação. A cor do vestido também foi pensada. O vermelho escolhido representa o dinamismo de toda batalha. Uma pequena flor de pano presa próxima aos seios sinalizava para a feminilidade independente do paradigma: uma mulher só é mulher se tiver cabelos.

Apenas uma pessoa aproximou-se para assistir a apresentação, que também contava com um vídeo da performance original sendo exibida. Três outras pessoas viram de longe o que acontecia e mesmo sendo convidadas a se aproximarem, mantiveram-se distantes e pareciam perturbadoa com o fato de uma mulher deliberadamente raspar seus cabelos. Essa idéia de agressão contra a imagem do que deve constituir a beleza feminina também foi compartilhada por praticamente todas as pessoas que comuniquei que iria ficar sem cabelos. Ironicamente, todos que se mostraram contra a idéia adoraram o resultado final.

Pude observar tambémo quanto essa transformação deixou de ser uma “agressão” contra a minha pessoa e passou a ser uma “agressão” social. Como se apenas por motivos de saúde eu pudesse exibir um couro cabeludo desnudo. Sou uma ofensa. Há os que não respondem um cumprimento de bom dia, os que não aceitam um simples gesto de ajuda para segurar uma bolsa no ônibus e os que me identificam com um figura alienígena ao me tratarem com todo distanciamento que o excesso de educação carrega no trato interpessoal. Por amostragem, observei que 95% das mulheres acima de 60 anos me olham como que ultrajadas, 80% dos homens acima de 60 anos parecem se divertir com minha imagem, 30% das mulheres na faixa dos 30 anos me encaram com desdém, 20% dos homens dessa mesma faixa etária fazem piadas. Adolescentes de ambos os sexos ficam chocados, a quantidade eu desisti de tentar contabilizar. Não passarei incólume aos olhares, isso é um fato. Mas no saldo final, considero bastante positiva tal experiência. Todo embasamento teórico só me deu força para olhar nos olhos de quem me vê e sustentar a posição de uma subversão devidamente fundamentada.




Link para o vídeo: www.youtube.com/watch?v=Ss0tH4lfM_M

3 comentários:

  1. Excelente! adorei o texto e adorei o resultado de sua performance,inclusive o coro des-cabeludo.

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  2. A exemplo da atemporalidade humana em manifestar os símbolos da fé, um paralelo pode ser facilmente traçado com a entidade divina, africana de "Exu Obará", cultuada no Candomblé em sua mitologia pouco conhecida e exageradamente mistificada.
    Esú (exu) é a força que gira em torno de sí na dança em que incorporado, seguindo o ritual de todos os Orixás, dança para remontar a síntese de seu divino fundamento. Movimentando-se em espiral demonstra essencialmente que é o movimento e o corpo humano, por onde é exalada a vontade, o amor, inveja, desejo, ternura, o caminho para a sexualidade, a festa da luxuria. Por esse motivo, carrega nas mãos enquanto dança um símbolo fálico, que se refere a vida e seus prazeres, a urda do corpo,fala todas as línguas.
    Exu não tem sexo ou direção, representa todos os caminhos do prazer e dos sentimentos inerentes ao homem. Tem a característica de não julgar e não possuir senso, é puramente o instinto sem a moral, agrada a quem ele agradar e o fogo.
    Esta religião parece ter abarcado a gana que agora insurge em varias expressões, principalmente a artística, de transgredir e entender como parte do todo, este arquétipo massacrado pela moral-ético sócio-cristã. Onde o homem Transcende os limites da pele toda vez que se movimente, se comunica, seja para agradar ,seja para agredir. A comercialização da auto-imagens, a perda de tudo o que é “Ser’ integralmente humano, é a perda do Exu em nós. Perda da capacidade de desconstruir, reconstruir, construir e destruir
    Sem Palavras para a comoção Thais,

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  3. Excelente trabalho de análise e de re-enactment, nao somente pela contextualizaçao que efetua com a performance inicial de Orlan e o seu Manifesto Carnal, mas também com o diálogo que estabelece com a Contemporaneidade, evidenciando pre-conceitos e idéias pré-estabelecidas acerca de padroes femininos de beleza. Performance corajosa que leva a questao da auto-transformacao até a consequencia de interferir sobre o físico, testando os limites desta experiência e opera realmente uma junçao entre arte e vida, já que esta transformaçao, pelo menos durante um tempo, é ireversível. Excelente trabalho.

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