- A descoberta de uma arte.
Quando começou o curso e o conteúdo foi exposto pensei em trancar. Performance era algo que não me interessava e que na verdade me provocava uma certa rejeição. As coisas que havia visto me pareciam uma grande oba-oba em nome da arte, mais uma forma encontrada por pseudo-artistas para exibirem seus egos. Como diz Hans-Thies Lehmann “Se o que apresenta valor não é a obra ‘objetivamente’ apreciável, mas um procedimento com o público, tal valor depende da experiência dos próprios participantes, portanto de um dado altamente efêmero e subjetivo em comparação com a obra fixada de modo duradouro. Torna-se impossível até mesmo definir a performance – por exemplo, o limite a partir do qual haveria meramente um comportamento exibicionista e extravagante.”, (LEHMANN, Hans-Thies, O Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosacnaify, 2007 p. 227) A leitura de Lehmann para outra matéria provocou uma reflexão maior, que me levou a permanecer no curso: se voltei para a faculdade depois de tanto tempo não podia me fechar de tal maneira para algo que na verdade não conhecia. E o que mais me fascinou no processo de conhecimento foi perceber a enorme contribuição que o estudo da performance e das formas que ela adquiriu pode trazer para questões do teatro contemporâneo. Se a performance é o não-teatro porque vive do imediatismo, de um presente absoluto que não pode ser reproduzido, ela tem em comum com o teatro o desejo do encontro, ainda que em condições diferentes.
- As escolhas: três tentativas.
Resolvi então fazer o curso e comecei a pesquisar diferentes performances, procurando uma para reconstituir. Minha primeira escolha foi obviamente a mais segura, uma performance de Bruce Nauman realizada na solidão do estúdio e gravada em vídeo, intitulada Walking in an Exagerated Manner Around the Perimeter of a Square, algo sem riscos ou exposição. Não me passou muito pela cabeça porque fazer aquilo, se eu tinha que fazer então aquela era viável. Comecei a me preparar, assisti algumas vezes ao vídeo original disponível (um trecho) e arrumei o espaço ( a sala de minha casa). Neste ponto estávamos lendo Renato Cohen, Lehmann e outros textos e então comecei a me questionar: Porque fazer aquilo? E me dei conta de que na verdade eu não me interessava por este artista e sim pela facilidade em reproduzir o trabalho. E, no entanto, se todo o questionamento é em torno da re-encenação da performance, esta cópia preguiçosa não fazia sentido nenhum. Então decidi procurar outra coisa. Achei um trecho de um trabalho de Pina Bausch que me encantou e quis reconstituir. Como são três pessoas chamei dois amigos atores com quem já trabalhei como diretora. E assim que comecei a preparar o processo vi que estava enrolando de novo já que eu simplesmente ia dirigir uma re-encenação e fazer uma pequena participação na qual toda a interação seria com os outros atores e fechada. Isto eu já fiz, muito, e não responde a proposta do curso. Como ainda estávamos no meio do semestre relaxei. Comecei a estudar as performances de Marina Abramovic já que me interessei bastante por ela depois de ver a entrevista e ler o texto da Art Press “Performances Contemporâneas” (Art Press No 7).
- Conversa com Marina Abramovic.
Pouco depois de começado o curso saiu uma matéria sobre Marina Abramovic na capa do Segundo Caderno do jornal O Globo, sobre a inauguração de sua exposição no MOMA em NY. A partir daí comecei uma longa ‘conversa’ com esta artista que tem sido para mim a materialização do meu entendimento da performance. A partir dela, de sua postura e reflexão sobre o próprio trabalho, sua capacidade (para mim fundamental no artista) de mudar, de renegar-se, voltar ao início e de se contradizer sem contradição comecei a entender (acho) o pensamento do artista performático, onde ele quer chegar e como ele está inexoravelmente ligado ao contexto em que vive e performa. (no que não é diferente do teatro, uma arte sem museus). No caso de Marina uma análise cronológica e biográfica do seu trabalho deixa clara a permanente conexão de vida e obra. Por exemplo, durante os anos na Iugoslávia, sob a pressão da violenta repressão política e familiar ela realizou várias performances em que os limites do corpo eram testados. Ela conta em uma entrevista que até os 29 anos, quando se exilou, era obrigada pela mãe a chegar em casa antes das 10h da noite e que neste anos fez algumas de suas performances mais dolorosas e perigosas. Os anos de seu relacionamento com o artista Ulay são marcados pelo trabalho a dois, inclusive a separação. Enfim, a arte da performance é para ela uma arte transformadora do artista, que propõe a transformação ao outro ao vivê-la. Ela é imediata, sem preparação espiritual ou mental, exigindo somente a decisão de fazê-lo. E mesmo quando é re-encenada exige o ato de presença total por parte de quem refaz, a experiência transformando a performance a cada re-encenação em outra performance.
- Decisão de não fazer.
Neste ponto eu decidi que queria fazer uma das performances de Abramovic e escolhi uma parte de “Balkan Baroque”, uma instalação feita por ela na Bienal de Veneza em 1987, um vídeo chamado “How we in the Balkans Kill Rats”. Comecei a decorar a história dos ratos e ensaiar a dança que ela faz no final e logo estava de volta ao lugar de onde parti: o teatro. Então pensei, bem e se eu contar a uma história de como se faz algo absurdo e cruel no meu contexto, (Rio de Janeiro, 2010) que tenha a mesma força do que ela conta? E se ao invés da música folclórica que ela dança eu dançasse um samba? O contraste seria o mesmo. Mas aí eu comecei a ficar incomodada com esta forma estranha de copiar sem copiar e que também não sai do âmbito do teatro, já que é uma situação de palco/platéia, com toda a segurança que esta convenção gera.
Então estava neste ponto quando fui à aula e soube que um grupo ia fazer “Cut Piece”. Nesta performance todas as possibilidades de reviver de outro jeito estão latentes, é possível fazê-la de novo e de novo sem copiar, vivenciando a cada vez e em cada contexto porque ela está, acontece, na presença, no imediato e na entrega do artista ao momento. Ali estava a possibilidade do encontro. Decidi na hora que ia fazer e no fim da aula conversaria com os outros. E o tempo da aula foi o tempo de sentir a certeza de que eu NÃO ia fazer aquilo de jeito nenhum. (Esta certeza foi reforçada quando li e ouvi os relatos dos corajosos colegas que fizeram e repetiram.). Então ficou bem claro para mim que qualquer performance que eu fizesse seria uma imitação, um truque, porque eu não tenho nenhum desejo de fazer, não vou jamais tomar a decisão de fazer. Assistir aos vídeos, que achei muito bons reforçou esta certeza, de que na área da performance eu sou e serei sempre uma observadora. Falei com Tania Alice que me propôs escrever este texto explicando porque não fiz a performance. Resolvi escrever, ainda que não ache que está a altura do que deveria ser, porque funcionou como um processo de análise do trabalho com esta matéria.
- A performance e o teatro.
Como se posicionam então, no contemporâneo, teatro e performance em relação um ao outro? Haverá um campo intermediário?
Para citar Hans-Thies Lehmann, “A imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artistas e público se encontra no centro da “arte performática”. Assim, é evidente que deve surgir um campo de fronteira entre a performance e teatro, à medida que o teatro se aproxima cada vez mais de um acontecimento e dos gestos de auto-representação do artista performático..” (LEHMANN, H, Teatro Pós-Dramático, São Paulo: Cosacnaify, 2007. p223)
O teatro contemporâneo, assim como a arte contemporânea em geral, vive um momento de fragmentação. Nicolas Bourriaud em seu livro “Estética Relacional” discute esta questão no capítulo “As práticas artísticas contemporâneas e seu projeto cultural” (BOURRIAUD, Nicolas, Estética Relacional, São Paulo:Martins Fontes, 2009.) O artista se vê hoje obrigado a abrir mão do grande projeto de renovação, de reconstrução, de uma nova ideologia, em função de um trabalho numa escala menor mas mais diretamente ligado a sua realidade imediata e portanto com mais chances de modificá-la. Isto pode significar uma oportunidade histórica a partir da qual tem surgido os mundos artísticos que conhecemos. “Em outras palavras: aprender a habitar melhor o mundo em vez de tentar construí-lo a partir de uma idéia preconcebida de evolução histórica.” (p. 18)
Nesta busca cada vez maior do diálogo direto com o receptor o teatro precisa mergulhar em questões levantadas pela performance. Questões como presença, imediatidade, controle, contato, jogo e improvisação estão no centro de tudo que venho trabalhando em minha pesquisa e o estudo da performance causou um autêntico terremoto em meu pensamento, a tal ponto que decidi reiniciar um trabalho que estava parado há dois anos porque as questões estão bem mais claras agora, ainda que totalmente sem resposta. A repetição desejada pelo ator, necessária ao teatro, fatal na maioria dos casos é o centro da questão. Os processos de troca vivenciados pelo performer são o primeiro elemento a ser explorado, creio eu. Acho que preciso aprofundar ainda muito meu entendimento deste universo para entender cada vez mais as possibilidades deste campo intermediário.
Trajetória interessante e autêntica, que consegue se conectar com as vivências e a história performática e teatral de uma forma geral. nesse sentido, é muito mais corajoso nao fazer do que fazer, visto que o conjunto de leituras e reflexoes conduziu ao entendemimento que é uma linguagem artística que exige um grau de auto-investimento, exposiçao e engajamento alto e que se trata de algo "sério"- alias, muito sério - vital.
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