domingo, 19 de dezembro de 2010

Just

Estudo sobre Margaridas II

Insolitas margaridas
Margaridas distantes dentro do presente
Doloridas amargas idas
Corpos de leite em pétalas skinny
Avareza de carne
Não disposta a moer em caules espinhos
A Infante fatalidade
Nina o corpo do passarinho desfalecido
Amarga ida
Te lambo num cais inerte
Não que não sejas em si um mimo
Apenas tento me esquivar dos titãs não adormecidos
que me trituram pela geléia dos ossos
A sua pele branca
Límpida em desejo meus augúrios se desfazem
Latejo
Lenta e estonteada fome em que a aceleração é vertiginosa
Tua pele
O branco e o rosa
E eu que antes não havia sentido essa fome liquida
É no dorso das palafitas que minhas solas resistem
Os gomos de sua digital em minhas papilas
É meu festim diabólico
Satã comeu mais que um cérebro
Mas eu não o temo
Eu temo o menino de pele branca
O papel em branco do autismo do seu coração

Valeri Rodrigues

Eu escrevi este “poema” em 29 de setembro (fluxo de um rompimento) data anterior a realização de minha performance. Tempo em que eu ainda perdida, me sentia sem desejo até de pensar sobre qual obra e artista eu iria escolher para fazer o re-enactment. Mas agora entendo como o caos de minha resistência se condensava e subterraneamente articulava as imagens de Cindy Sherman, Marina Abramovic, Ulay , Bas Jan Ader com os meus abismos interiores.
Por mais que a gente não saiba, o olho não escolhe ao acaso, algumas imagens já tinham entrado definitivamente na minha retina, já tinham se articulado com a minha vida e o meu presente antes da realização do trabalho.
Depois dos turbilhões que se emanciparão de mim no ato da primeira feitura da performance, pude refazer o percurso e juntar os cacos, para refazer uma síntese no vídeo que apresento agora.
A princípio pensei em I’m too sad to tell you, de Ja Bas Ader, descoberto através de Luciana Serpa que refez de um ponto diferente do eu gostaria de fazer, pensei até mesmo em fazê-lo rindo. Como seria o processo de instaurar uma emoção tão forte e gravá-lo? Mas logo desisti. Depois pensei então na performance Free Hugs, distribuir abraços gratuitos na cidade, ou quem sabe vendê-los para ver como as pessoas se comportariam em relação a abraços vendidos, mas também deixei de lado por não querer me expor tanto, na rua, no meio de pessoas, tendo que sentir outros corpos juntos ao meu.
O que fazer? Uma imagem tinha entrada na minha cabeça, Marina Abramovic e Ulay, um segurando uma flecha e o outro um arco: relacionamento, amor, ódio, repulsa e atração. Tensões que me são intimas. Logo vi o vídeo AAA de ambos também e resolvi refazê-lo.
No dia em que finalmente ia realizá-lo, uma amiga me liga desesperada em função de um amor novo e instável e me pede para eu ir a sua casa e diz que vai me ajudar a fazer a gravação. Transfiro tudo para a nova realidade que desponta, chega Claudio Althiery meu parceiro na performance e Tatiana, a amiga, não sabe gravar na sua maquina Canon nova. Como ela havia me mostrado o trabalho da Nam Goldin, fotografa americana, que tem uma obra direcionada ao olhar da intimidade de casais, gays, lésbicas e transexuais, achei que seu trabalho se relacionava com o de repulsa e atração de Marina e Ulay e resolvi fazer as fotos.
As fotos para minha surpresa se desenrolaram sincronicamente com o Claudio, mergulhei suavemente nesse universo de intimidade, de repulsa e de atração, de tensão constante e insatisfação, vazio, prazer e tédio através dos nossos corpos e das nossas movimentações. Fiquei inclusive à vontade para me desnudar, tudo cercado de delicadeza, apesar de intenso.
Só que no momento posterior, entrei em contato com os meus fantasmas a partir do problema técnico que se desenrolou após o computador de minha amiga dar pau. E não foi só o computador que deu pau, nós demos pau, as fotos deram pau, minha cabeça deu pau. Perdi o trabalho. Me senti impotente, um trabalho tão intimo já não me pertencia mais, e eu não tinha nenhum controle sobre ele, pois ele estava na mão de terceiros e todo o tipo de vontade, que não a minha, podia incidir sobre ele. Fiquei arrasada, triste demais para contar claramente o que havia acontecido para o meu parceiro, o Cláudio.
Mas ao perder o trabalho o reencontrei.
Depois da última aula, pude perceber o que eu havia encontrado: eu, a minha matéria orgânica, química, histórica e intransferível. E o quanto todas aquelas imagens tinham penetrado na minha mente e coração para que eu reproduzisse e vivesse “por acaso” todas as referencias que se aliaram às minhas lembranças e vivências anteriores. Tudo estava registrado e havia se misturado a outros registros de minha vida. Como se os fantasmas das performances desses artistas tivessem vindo acordar os meus próprios fantasmas.
Lehmann afirma no seu livro, Teatro Pós Dramático: “na arte performática a ação artista do artista está menos voltada ao propósito de transformar uma realidade que se encontra fora dele e transmiti-la com base em uma elaboração estética, aspirando antes a uma autotransformação’.”
O amor exige entrega, conseqüentemente o que vivemos é intimidade. Uma intimidade que se dá e que não se tem mais o menor controle sobre ela, tendo o outro o poder absoluto de vivê-la como quiser. Acredito que foi nessa fenda que pude sentir a repulsa e a atração de forma mais profunda, podendo entender o meu pânico de intimidade e exposição – na realidade em minha solidão a minha aparente exposição é um escudo com o qual permaneço escondida, portanto ela é falsa, o escudo está em minhas mãos, ao me deixar ser vista pelo outro nua, me desmascarei. Daí passei a acreditar na potencia do nu, que não é apenas tirar as roupas, mas é se expor de verdade. Numa relação somos ao mesmo tempo potentes e impotentes. A assustadora impotência, nada mais é que um desamparo em relação a própria vida. Mas uma impotência inevitável, por mais que sofrida. O nu do meu corpo me deixou impotente em relação aos meus preconceitos, ao outro e a minha imaginação.
Meu corpo e minha nudez foi a matéria principal que me fez mergulhar nas minhas idiossincrasias, e voltando a Lehmann, “o corpo é aproveitado como material no processo de significação, mas onde essa situação é expressamente provocada com o objetivo da autotransformação.”
Ao viver esse processo real no aqui agora pude encontrar o passado que está presente e entender que essa performance foi a síntese de um amor mal acabado, atravessado por uma atração e repulsa extenuantes, em que eu desempenhei o papel de uma palhaça de mim.
Dia seguinte ao da aula, fui comprar meu nariz de palhaça e minhas rosas: ao escolhê-las pensei, é inevitável que no processo de selecioná-las eu não me arranhe nos espinhos. Arranhos de liberdade, de catarse. Talvez. Fiz duas séries de fotos minhas, em dias diferentes, pois esperei as rosas murcharem. Eu mesma me fotografei, não usei tripé, ou disparo automático. Em algumas fiz um trabalho de textura em outras nada fiz. O importante é que mesmo ingênua de mim, superei as minhas resistências, num trabalho que não fechei e que se direciona a outros processos. Afinal são flores e uma Ophélia. Uma Ophélia descoberta nas pétalas das rosas desmanchadas.

Bibliografia

LEHMANN, Hans Thie. Teatro pós dramático. Trad. Pedro Sussekind. Cosacnaify. São Paulo: 2oo7.
Valeri Rodrigues

2 comentários:

  1. Trabalho muito interessante! A dificuldade, a questao como ponto de partida se tornam o próprio objeto da reflexao. Nao há uma realizaçao "falsa" de um trabalho por cumprir uma tarefa, mas a elaboraçao de uma trajetória específica (e uma reflexao sobre ela, conectada com as idéias de desenvolvidas por Lehmann), que dá pra entender que os conhecimentos discutidos e abordados em sala de aula estao realmente presentes e em sedimentaçao. Que seja um ponto de partida para a sua PMT.

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  2. Sem palavras. Emocionante. Gostei muito. Parabéns... pela experiência e pela coragem de se expor... de se expor pela nudez - antes para vc mesma - até a alma (para todos nós). Td de bom e merda sempre. Bjoks.

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