segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Re-Cria-Ação na coleira



" A arte é um estado de encontro fortuito"

Tenho dentro de mim, no âmago do que me forma, uma insatisfação absurda, uma espécie de vazio que me engole, e que acredito eu, é um dos principais motivos que me torna artista. Andei pelos corredores da universidade à procura de algo que ainda não sabia bem o que era, no desejo de que minha insatisfação com essa " coisa " ( Segundo a definição de Émile Durkhein a respeito dos fatos sociais, para ele definidos como "coisas") não desaparecesse dentro de mim, mas que me servisse de impulso para experimentar e criar em cima disto através do sensível que é inerente ao ser humano, mas que por vezes é mecanizado e padronizado segundo as condições socias e comportamentais em que somos brutalmente inseridos. Eu queria (e continuo querendo) mais da minha arte, desejava ( E continuo desejando ) afetar e ser afetada Deleuziosamente* através da minha arte, de sua subjetivadade, por intermédio do que é sensível, e esperava da academia, algo próximo ao alimento da minha fome. " Em contrapartida, a academia - assim como os congressos , reuniões científicas, encontros e demais atividades voltadas ao fomento, divulgação ou discussão das pesquisas desenvolvidas por artistas-pesquisadores - deve cuidar por não limitar, com regras demasiado rígidas, a liberdade formal e conteudal em que se apresentam os estudos práticos em arte, sob o risco de pasteurizá-la pela forma ou pela abordagem temática, e reduzir a possibilidade de criação de potência e sua influência a novos acontecimentos em arte e pesquisas acadêmicas.( Anti-Artigo ou Artigo para a diferença -Diego Baffi)" Só consegui , me livrar das "rédeas acadêmicas", quando puxei as disciplinas de ATAT e a prática paralela do treinamento para o performer, após ter feito ATT com a Tânia Alice, e ter aberto uma brecha da porta, onde por trás dela, ainda meio tímida, pude ter uma ideia do que é performance. Política, subjetiva, poética, estética, relacional, dentre outras coisas, a performance permite ao artista habitar " (...) as circunstâncias dadas pelo presente para tranformar o contexto da nossa¹ vida ( nossa¹ relação com o mundo sensível ou conceitual) num universo duradouro". Uma questão de "aprender a habitar melhor o mundo" sem construir ideologias, nem utopias, construindo apenas um outro modo de existir, um outro modelo dentro dessa realidade que já existe... Seja essa realidade, qualquer realidade vista pelos olhos do artista ... Isso, era o início do que eu estava buscando. Em um outro momento, momento já da re-criação, me "deparei" com Valie Export passenado com Peter Weibel amarrado por uma coleira, de quatro como um cachorro, pelas ruas. Um vínculo foi gerado naquele momento! Com tremendo poder de reliance², signos, ícones, siglas, símbolos, bandeiras, logomarcas, e tudo que vinha das imagens que eu via, me diziam algo (subjetivo demais, mas gritavam, eu dava importância ou não, mas eu ouvia!) E aquela imagem, instaurou entre mim, Peter e Valie uma proximidade, estreitando o espaço da nossa relação, que acabara de surgir, naquele espaço/tempo fora do cotidiano, no cenário da cidade, cada um com sua subjetividade, mas uma elaboração coletiva do sentido. Tinham outras pessoas também, obervando aquele instante que ia passar em algum momento, que também faziam parte dessa nossa relção. A arte de Peter e valie, ia sumir no tempo, restando apenas o registro, mas naquele instante presente, todos ali habitamos um mundo em comum, uma criação a partir uma estética relacional, derivada desse nosso encontro fortuito. Eu fui afetada, e quis afetar. Encontrei uma performance que gostaria de reproduzir. Eu convidei um amigo querido, que também é ator: André Siffert, para a "Re-criação" desa performance. Escolhemos como cenário: a "Calçada da fama", uma rua bastante populosa da cidade de Teresópolis onde o comércio é grande ( Escolhemos Teresópolis para experimentar a construção desse trabalho em uma cidade pequena, que começa a acordar artísticamente agora, por muito esforço dos seus respectivos artistas). Queríamos de alguma forma, interagir com o quadro capitalista inserido pelo Sr. Papai Noel aos transeuntes e lojistas presentes naquele espaço, onde as pessoas passam, compram e voltam para as suas vidas privadas, muitas vezes até esquecendo de desejar um bom dia ao funcionário que os vendeu, ou vice-e-versa. Por isso, eu, que fui carregada na coleira, ou seja, estava representando a "classe oprimida" por esse tipo de consumo (Traçando um breve paralelo com Augusto Boal ), usava como símbolo, um gorro de Papai Noel. Essas imposições tradicionalistas costumam me causar dor! Sempre me incomodou a distância que esse sistema coloca entre as relações humanas e a forma com que lidamos com os afetos hoje em dia, de maneira muitas vezes fria, dolorida, semelhante a um corte abrupto ao que temos de mais humano e sensível dentro de nós. " A mecanização geral das funções sociais reduz progressivamente o espaço relacional". Eu quis mostrar essa dor, e quis também inserir a perda da identidade por intermédio dessa mecanização das coisas, por isso, coloquei sobre o rosto, faixas daquelas que colocam sobre as fraturas, nos hospitais. Sem voz, calava-me uma fucinheira. E o André, desfilava comigo pela rua com um terno e uma gravata, observando as vitrines, vendo as matérias das revistas e jornais nas bancas. Não era uma imagem agradável aos olhos, e eu senti que muitas pessoas ficaram realmente chocadas com o que viram. De acordo com a leitura que faziam, muitas pessoas ficaram perturbadas. " A função crítica e subversiva da arte contemporânea agora se cumpre na invenção de linhas de fuga individuais ou coletivas, nessas construções provisórias e nômades com que o artista modela e difunde situações perturbadoras". E era isso que fazíamos, traçávamos nossa linha de fuga embasada na nossa realidade, na verdade que tínhamos diante daquelas lojas e produtos. Mas não dizíamos nada com nossas bocas. O André, eventualmente dava um boa tarde a alguém, mas nada além disso. Muitas pessoas fizeram uma leitura acerca do machismo, aceitamos quando nos propusemos a olhar de fora (Sabe-se que é necessário ter um olhar interior e outro exterior acerca desse tipo de trabalho), pois lidamos com questões subjetivas, e a performance de Valie e Peter me sugere também uma ação feminista, portanto, tudo isso nos coube muito bem. Se de fato, ainda existe um machismo irracional, que as pessoas vejam então, que se sintam incomodadas se esta for a sua forma de reação. O que queremos é que sintam, se relacionem, que percebam, que comentem, que se desloquem, que problematizem... Assim como nós. Cada um com sua subjetividade, afetando e se deixando afetar. Gostando ou não, apoiando ou não, éramos um bom quadro, e conseguimos condensar naquele instante uma emoção que o espectador deveria viver e prolongar. Por mais que alguns não compreendessem e achasse aquilo tudo uma falta de melhor aproveitamento do tempo, ninguém retirava o olhar da nossa imagem. Ao fim da performance, uma mulher nos surpreendeu. Ela estava com raiva, se dizia constrangida. Disse-nos que enquanto mulher se sentiu ofendida ao assistir o nosso passeio, e como já não estávamos mais performando, eu, enquanto artista, tentei lhe explicar e ela sequer me deu ouvidos. Ela usava um tom de voz agressivo, e gritava coisas como : - Isso não é arte! Não pode ser! Arte é coisa fina! Se eu quisesse ver algo assim, eu pagava para ir ao teatro e assistia, mas, na rua... Na rua vocês não podem fazer isso. Não têm esse direito!
"Se a opinião pública tem dificuldade em reconhecer a legitimidade ou o interesse dessas experiências, é porque não se apresentam mais como prenúncios de uma inexorável evolução histórica: pelo contrário, elas se mostram fragmentárias, isoladas, sem uma visão global do mundo que possa lhes conferir o peso de uma ideologia. Não foi a modernidade que morreu, e sim sua versão idealista e teleológica"." Agora ela (A arte*) se apresenta como uma duração a ser experimentada, como uma abertura para a discussão ilimitada." E era isso que queríamos, atingimos o nosso objetivo, inauguramos uma discussão acerca do que acontecia naquele instante em frente as lojas. Tempo mais tarde, ideias mais esclarecidas, um outro entendimento a respeito do que fizemos, dei-me conta de que havia exagerado um pouco nos objetos, acredito que não precisava da faixa, nem da fucinheira, que eram signos demais e que pode ter ficado um pouco confuso, e também, que a imagem poderia ser diferente caso eu convencesse o André a ir na coleira... Podíamos até alcançar melhor as questões acerca do Natal, do consumismo característico dessa época, e da "falsa aproximação" das pessoas nesse período. " A arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relações". Queremos outras trocas, mais afetivas, mais humanas, mais sensíveis... É isso que propunhamos, de acordo com o inteligível que nos coube. A arte contemporânea apresenta modelos possíveis, livres de ideologias e utopias, apenas modelos possíveis a realidade que está aí, formas de habitar esse mundo. Outras relações, não-cotidianas, não-mecanizadas, se criam a partir de então. Como definem Deleuze e Guatarri " (...) a obra de arte como um bloco de afetos e perceptos: a arte mantém juntos momentos de subjetividade ligados a experiências singulares (...)" Considerando tudo isto, fizemos o melhor que pudemos. Nos entregamos ao trabalho, e seguimos. Hoje, eu sei que o caminho ainda é longo, e que uma vez meus olhos abertos, uma vez percebido o mundo dessa forma, nada será como antes. Performance como arte da vida real, assim que eu vejo. Se é isso mesmo ou não, dispenso o certo e o errado, fico apenas com o que já tenho sem limitá-lo a conceitos cristalizados. Quero estar aberta as relações.

Bibliografia:
BORRIAUD; Nicolas; A estética relacional;
MELIN; Regina; A performance nas artes visuais
BAFFI;Diego; Anti-artigo ou Artigo para a Diferença

Um comentário:

  1. Cintia, agora SIM o texto está reflexivo e juntando de forma instigante leituras e prática performática. Excelente trabalho e iniciativa de "habitar melhor o mundo" com palavras, açoes, reflexoes, a(r)titude.

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