segunda-feira, 14 de junho de 2010

Um dia no traje - Reenactment da Experiência n.3 de Flávio de Carvalho


Ao olhar a performance como uma linguagem artística híbrida das artes visuais e cênicas, que tem na sua origem formal a presença do artista realizando uma proposta situacional específica, nota-se que ela rompe não só com a forma, mas também com as propostas de institucionalização e registro usuais a elas. Com estes questionamentos acerca da natureza do acontecimento e da documentação da performance iniciamos nosso curso de ATAT. Essa linha de raciocínio nos levou à conhecer a idéia de reenactment, entendida como uma possibilidade simultânea de registro e criação a partir de uma performance já realizada.

Meu trabalho se desenvolveu a partir da performance Experiência n.3, do arquiteto, artista plástico, performer, escritor, ou seja, do múltiplo Flávio de Carvalho. No verão de 1956, o artista percorreu o centro de São Paulo lançando seu “New Look”, o traje tropicalista para o homem brasileiro, segundo Inti Guerrero*, “um traje executivo masculino, concebido especificamente para as condições climáticas, econômicas e culturais do homem urbano nos trópicos”.Esse traje era composto por uma minissaia de pregas, sandália baixa, meia arrastão e blusa de tecido fino e modelagem solta. Este trabalho, assim como muitos outros do artista, teve uma esfera de ação e integração com os meios de comunicação vigentes, o que afirmou o trajeto executado durante a performance como um grande lançamento da nova vestimenta. Inclusive, o artista informou à imprensa com antecedência a respeito da hora, local e ação que seria executada e, por um certo período, o trabalho obteve repercussão em jornais e televisão.


imagens do site http://acidadedohomemnu.blogspot.com/2010/04/flavio-de-carvalho.html

A performance de Flávio é, simultaneamente, estranha e familiar ao público. Ele fala de identidade, integração e pertencimento a um local através de um elemento que, diariamente, se situa entre nós e o meio: a roupa que vestimos. Esse local do qual trata é especificamente a metrópole brasileira dos anos cinqüenta, com suas características climáticas, econômicas e culturais, e o novo look proposto pelo artista busca perceber e integrar ao cotidiano do brasileiro estas características. Flávio está falando da negação ou da afirmação de uma identidade local, de um homem permeável e atento ao meio onde vive.

Ao iniciar o projeto de reenactment para esta performance, decidi partir da sentença “lançamento de traje tropicalista para o homem brasileiro”. Percebi que teria que criar uma outra versão do traje, já que uma primeira impossibilidade se apresenta instantâneamente: é impossível para mim manter a fidelidade de gênero e causar impacto ao usar uma saia! Além disso, decidi problematizar o uso do tropicalismo como base conceitual e a ação de lançamento executada pelo artista.

A reflexão sobre o movimento tropicalista, me levou a buscar movimentos de vanguarda brasileiros que também questionam a identidade do país com seus trabalhos. Assim cheguei ao movimento antropofágico das décadas de 20 e 30, e à teoria perspectivista, estudo antropológico que está sendo formulado atualmente com base em apontamentos sobre a relação indígena com a alteridade e apropriação**. O entendimento destes dois movimentos contribuiu para a tentativa de criar um traje que se aprofundasse nas questões culturais e identitárias, sem deixar de lado as climáticas e econômicas. Assim, guias, penas e um turbante se uniram a uma saia plissada, salto alto e maleta de trabalho.

foto: Claudia Arcadier


Outra questão levantada foi a ação de lançar o traje. O apelo midiático detido pela figura de Flávio de Carvalho não me pertence, e seria muito pouco provável executar um lançamento nas proporções alcançadas por ele, o que ao meu ver, acabaria por empobrecer a ação, já que um lançamento só se faz diante da expectativa que o público tem de ter acesso a uma novidade. Por isso busquei outra ação, que também evidenciasse um certo modus operandi econômico/social da cidade. Essa reflexão evidenciou outra diferença entre a situação na qual se deu a performance original e a do reenactment: o local. Flavio de Carvalho executou seu trabalho no centro se São Paulo e eu, no centro do Rio de Janeiro. Ambas cidades são grandes metrópoles e centros econômicos, mas com características diferentes. Decidi, assim, afirmar um certo caráter despojado do qual o carioca tem fama e escolhi reinserir a banana, um produto tipicamente brasileiro e barato, no comércio informal da cidade. Minha ação seria comprar para, em seguida, vender, trocar ou mesmo dar as bananas.


O trajeto realizado foi o seguinte: saí da minha casa, fui até o Hortifruti mais próximo, peguei ônibus até o Largo da Carioca, andei, realizando eventuais paradas, até o Mercado popular da Rua Uruguaiana. Foram diversas reações: estranhar, rir, agir com naturalidade forçada, fotografar, elogiar, questionar, aceitar, entrar na proposta, levá-la além, recusar a banana, temer, não notar etc.


fotos: Claudia Arcadier e Joana Balabram


Ao terminar a performance, minha mala continha alguns dos objetos que foram trocados (outros, como a goiaba e o dinheiro não ficaram até o fim, pois foram trocados mais de uma vez). Foi interessante notar como eles também podem, assim como o traje, ser representantes da identidade brasileira: guaraná, pomada da índia, manjericão, divulgação de agencias de créditos e paçoca (as penas e trajes da imagem não foram fruto de troca, e sim, parte do traje).


foto: Bianca Arcadier


A realização deste reenactment/performance foi muito interessante para mim, principalmente porque busquei me apropriar das questões que noto no trabalho original e reconstituí-las de modo a que faça sentido para mim e para a maneira como percebo o espaço-tempo no qual me encontro.


Adorei o curso! Beijos, abraços e saudações a todos,


Bianca Arcadier

* Inti Guerrero foi curador da mostra “A Cidade do Homem Nu”, que reuniu obras de Flávio de Carvalho e outros artista no MAM de São Paulo, de abril a junho de 2010.


** Para mais a respeito, buscar o trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.




Um comentário:

  1. Excelente trabalho performático e de análise... Interessante como a noçao de troca, explicitada por Bourriaud, entrou como fator revelador de outro aspecto "identitário" - questionamento justamente colocado pela performance, este de "identidade"...

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