segunda-feira, 14 de junho de 2010

RECONSTITUIÇÃO OU RECRIAÇÃO?

Reflexões sobre criação intertextual a partir da ação performática realizada em diálogo com a performance “Imponderabilia” (1977), de Marina Abramovic e Ulay, por Beatriz Provasi

Desde o início do semestre, quando soube que o trabalho final da disciplina de ATAT seria a reconstituição de alguma performance historicamente marcante, senti que enfrentaria certa dificuldade. Não por questões relativas à própria idéia de reconstituição. Acredito que a idéia de autoria já foi há muito posta em cheque pelas noções de intertextualidade, e não vejo qualquer problema numa reapropriação de algo que já foi feito. Nem sei se caberia, como propôs Marina Abramivic, uma ética para a reconstituição de performances com uma série de normas a serem seguidas. Discordo de quaisquer limites que se imponham à criação artística. Por mais fiel que a reconstituição procure ser em relação à obra original, será sempre uma recriação, quando realizada por outra pessoa ou posta em novo contexto.

“(...) il [o re-enactment] engage moins la reconstruction de l’oeuvre qu’il ne participe pleinement a sa construction et fonctionne, en ce sens, comme un opérateur de vérité: il inscrit un geste, une action ou un fati dans l’histoire, en créant sa nouvelle archive.” (KIHM, p. 24)

Inclusive um mesmo artista que realiza sua performance em momentos e contextos diversos a está recriando. Cada ação é única, mesmo que seja “a mesma”. Ainda mais tratando-se da arte da performance, que na maioria de suas manifestações tem no espectador um co-autor cuja intervenção/ participação/relação com o que é proposto pode mudar significativamente o sentido de uma ação performática para outra.

“Esse regime de encontro casual intensivo, elevado à potência de uma regra absoluta de civilização, acabou criando práticas artísticas correspondentes, isto é, uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o ‘encontro’ entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido.” (BOURRIAUD, p. 21)

Ao tratar da questão espectatotorial na performance, Regina Melim lança a noção de “espaço de performação”:

“Outra questão a ser abordada parte da idéia de participação e compartilhamento, conduzindo-nos a outros procedimentos igualmente performativos. Para tanto, será lançada a noção de espaço de performação, traduzido como aquele que insere o espectador na obra-proposição, possibilitando a criação de uma estrutura relacional ou comunicacional. Ou seja, o espaço de ação do espectador ampliando a noção de performance como um procedimento que se prolonga também no participador.” (MELIM, p. 9)

A própria idéia de performance como estética relacional, privilegiando o lugar do “espectador” como co-autor em algo que se cria a partir da relação entre uma situação proposta e quem dela participa, questiona a noção de autoria na criação artística. Se o que se o que se propõe como “obra”, o resultado da ação performática, é uma relação, o “autor” perde seu “lugar privilegiado”, sendo mais um propositor, um instigador de situações de relação, que só se completam, só se realizam a partir do outro. Portanto, basta o público participante da experiência performática ser outro, para que a obra seja outra.

“Se o que [a performance] apresenta como valor não é a obra ‘objetivamente’ apreciável, mas um procedimento com o público, tal valor depende da experiência dos próprios participantes, portanto de um dado altamente efêmero e subjetivo em comparação com a obra fixada de modo duradouro.” (LEHMANN, P. 227)

“Sendo muitas vezes realizada em grupo, ela [a performance] desafia o conceito de autoria. Aberta à participação do espectador (interator), ela radicaliza seu estado gasoso.” (MEDEIROS, p. 114)

Como vejo, portanto, a reconstituição como criação (não de um autor, mas da relação que se estabelece entre pospositor e interator de uma situação no aqui e agora), pra mim não faria tanta diferença partir de algo já realizado para o desenvolvimento do meu trabalho, ou realizar outra coisa. E tendo em vista esta noção intertextual de que tudo está em permanente diálogo, de que as experiências se interpenetram, todo o material sobre as ações performáticas estudado e debatido em aula estaria de alguma forma presente na performance criada, bem como todas as minhas demais experiências, tudo o que li, tudo o que vi, o que me constitui.

“Em seu sentido mais amplo, o dialogismo intertextual se refere às possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto das práticas discursivas de uma cultura, a matriz inteira de enunciados comunicativos no interior da qual se localiza o texto artístico, e que alcançam o texto não apenas por meio de influências identificáveis, mas também por um sutil processo de disseminação.” (STAM, p. 226)

“A intertextualidade é mais ativa, pensando o artista como um agente que dinamicamente orquestra textos e discursos preexistentes.” (Id. p. 227)

Enfim, creio que uma ação performática realizada livremente seria mais potente, estando ao mesmo tempo em diálogo com todos os textos/ações de performance estudados, e textos, vivências, experiências acumulados ao longo da vida do performer, sobretudo por partir de um desejo genuíno de comunicar algo próprio, e não de uma obrigação de realizar algo pré-determinado. A dificuldade que se impôs a mim, portanto, foi essa, de já começar por um limite estabelecido: definir uma performance específica a ser recriada.

Procurei buscar estímulo para o trabalho, optando inicialmente por algo que me impactasse. Vi na performer Marina Abramovic alguém com quem eu poderia estabelecer algum diálogo, por ter performances visualmente muito fortes, e ao mesmo tempo um engajamento em questões políticas e sociais. Encontrei nela alguma afinidade ideológica, e mais que a forma da performance (embora me ativesse a ela como ponto de partida), pensei em trabalhar essas questões, buscando um sentido íntimo para a reconstituição de algo que não me é próprio.
Logo de início, antes mesmo de me aprofundar na pesquisa sobre a obra de Abramovic, me deparei com uma foto de tal impacto que, mesmo deslocada da ação performática, me comunicava algo com o que eu gostaria de dialogar. Trata-se de uma foto da performance “Balcan Baroque” (1997), em que a performer encontra-se sobre uma enorme pilha de ossos ainda molhados de sangue, e com um balde e uma escova, realiza a ação de limpá-los. De cara, apenas esta imagem fixada, já me remeteu à violência, e ao desejo de limpar o sangue derramado. Um desejo de paz, que não fica só no campo do desejo, mas que parte para a ação concreta: lavar o sangue.


(Balcan Baroque - 1997)


Na ação de Marina Abramovic, que durou quatro dias, ela evocava o genocídio provocado pela guerra dos balcãs, trabalhando também com memórias da infância em seu país, com cantigas entoadas ao vivo e projetores ao fundo revelando imagens de seus pais. A associação que pensei realizar à princípio, focada ainda apenas na imagem da violência, foi com a guerra do tráfico, ainda com contornos pouco definidos, mas imaginando a realização da ação em alguma favela carioca onde a violência se impõe mais fortemente no dia-a-dia das pessoas. A associação com a história do país e o ato de purificação logo me levaram para outro caminho. Pensei nos corpos (até hoje) desaparecidos dos presos políticos no Brasil durante o Regime Militar. Pensei no quanto isso poderia ser significativo no momento presente, se associado, ainda, à realização da Copa do Mundo, para onde se voltam todas as atenções atualmente, tendo em vista que na Copa de 70 (no auge do Regime Militar), toda essa euforia patriótica foi usada para encobrir o que se passava nos porões da Ditadura (perseguições, torturas e crimes políticos).

Realizaria, então, uma projeção pública ao vivo da final da Copa do Mundo, para a qual os espectadores seriam convidados. Em outro projetor, a final da Copa de 70 estaria sendo reproduzida. Além de lavar a grande pilha de ossos ao som do hino da Copa de 70 (“90 milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção...”), promoveria o enterro real desses ossos como enterro simbólico dos corpos desaparecidos, fincando na terra, para cada osso enterrado, uma placa com o nome, foto, ano de nascimento e data do “desaparecimento” de cada um desses presos políticos cujos corpos ainda não foram encontrados até os dias de hoje. Ao final da performance, a pilha de ossos desapareceria, dando lugar a uma nova criação: um Cemitério de Desaparecidos Políticos. Para potencializar essa ação artística ainda mais como ação política, pensei em buscar parceria com o grupo Grupo Tortura Nunca Mais, e articular a ação também junto às famílias desses presos, que seriam convocadas a enterrar seus mortos, cujos corpos lhes foram negados.

Mas que uma reconstituição da performance original, o que se realizaria seria uma criação absolutamente distinta, carregada de novos sentidos, e novos estímulos, tendo na performance original apenas um ponto de partida, uma inspiração, uma motivação, um diálogo de intenções, a partir daquele registro fotográfico que me causou o primeiro impacto. No entanto, como este re-enactment causaria uma série de dificuldades de produção, desde a obtenção e transporte de um número elevado de ossos, até a instalação de projetores e articulações políticas, tendo ainda uma data fixa definida: a final da Copa, resolvi mudar o rumo do trabalho, que tinha como prazo de execução o dia 14/06, tornando este projeto irrealizável para a avaliação da disciplina.

Novamente, me vi perdida. Resolvi me manter em diálogo com a obra da Marina Abramovic, aprofundando a pesquisa sobre seu trabalho. Pensei em buscar no trabalho sobre relação um novo foco, um novo rumo, novas questões. Resolvi me fixar na série de trabalhos realizados em parceria entre Abramovic e Ulay. Os dois artistas se conheceram em 1976, e junto à relação amorosa desenvolveram uma relação de trabalho, com uma série de ações performáticas denominadas “Relation Work”. Até a separação dos dois foi marcada por uma grande performance (The Lovers – The Great Wall Walk – 1989), em que percorreram por vários dias, cada um partindo de um ponto, a Muralha da China, encontrando-se no meio do caminho para darem-se adeus.


(Light/Dark - 1977)

Deste trabalho me interessou, sobretudo, a indissociabilidade entre vida e obra dos artistas, e a intensidade da relação. Muitas de suas performances reproduzem a imagem de espelho, um de frente para o outro, colocados na mesma situação, seja um respirando o oxigênio do outro (Breathing in/Breathing out - 1977), ambos dando-se alternadamente tapas na cara (Light/Dark - 1977), os dois nus na entrada de uma galeria (Imponderabilia – 1977), um de costas pro outro com os cabelos amarrados (Relation in Time - 1977), cada um sentado na extremidade de uma mesa (Night Sea Crossing -1980), com os dedos apontados um para o outro (Point of Contact - 1980), e até mesmo com o uso de um espelho de dupla face entre seus corpos nus (Balance proof - 1977), etc.

(Relation in time - 1977)


(Point of Contact - 1980)

Para mim não faria sentido simplesmente convocar um homem qualquer para reconstituir alguma dessas performances, e sim alguém que pudesse representar na minha vida algo próximo do que o Ulay na vida de Abramovic. Não sendo casada, nem tendo um amante com quem tivesse uma relação de tal intensidade, vi na figura de um amigo, com quem tenho de fato uma relação de espelho, de irmão, de gêmeo, a possibilidade de parceria neste trabalho. No entanto, ao conversarmos sobre o trabalho, logo surgiram uma série de questões dele em relação à idéia de reconstituição, e vi que seria difícil seguirmos juntos nisso, pois nossas questões em relação a este trabalho específico eram bem divergentes. A questão dele, ao que me pareceu, era mais relativa à uma preservação da “autoria” e da “ação original” como algo “intocável”, o que se choca completamente com as minhas questões. Pra mim, uma ação performática, mesmo partindo de uma proposição já realizada anteriormente, será sempre uma nova ação performática, e não “encenação”, quando relacionada à vida do performer que a recria. Pra mim, em arte, nada é intocável, nem pode haver limites, nem regras. Enfim, me vi sozinha para realizar um trabalho que fala de relação, que depende de uma relação. Não podia simplesmente substituir a relação com uma pessoa por outra com a qual essa relação não existisse. Isso, sim, seria encenar. Seria mentira. Não teria uma relação real com a minha vida. E mais uma vez mudei o foco do trabalho.

(Breathing in/Breathing out - 1977)


(Balance proof - 1977)

Então, resolvi partir da relação Abramovic-Ulay para falar de solidão, que é o que tenho de concreto na minha vida. A não-relação. A falta do outro. A princípio pensei em realizar uma série de performances, sempre substituindo a figura masculina por algo que para mim representasse falta, ausência, solidão. Uma cadeira vazia, um espelho, um animal de estimação... O projeto acabou se restringindo a uma única performance de referência: “Imponderabilia”. A figura masculina real, humana, substituída, então, pela figura masculina tornada objeto, mercadoria: um boneco inflável, comprado num sex shop virtual. O sujeito tornado objeto, o humano tornado mercadoria. Para enfatizar essa dimensão, resolvi pendurar no boneco uma etiqueta com o preço do produto. Ao mesmo tempo, a partir dessa não-relação com o objeto, nasce uma relação humana real com os participantes que precisam encostar no meu corpo nu, assim como no corpo de borracha colocado à minha frente, para entrar em um ambiente. O local escolhido foi a porta de entrada da sala de aula, por representar um espaço institucional (como a galeria), com um público restrito (na galeria, interessados em arte; na sala de aula, alunos de performance), e um lugar por onde se tem obrigatoriamente que passar, que não oferece desvios. Dentro da sala, mantenho um laptop com o vídeo da performance original. É a exposição. O que se pode ver uma vez que se entra, enquanto a aula não começa. O vídeo, por sua vez, serve não como aproximação, mas como afastamento. São duas ações radicalmente diferentes, a performance original e a recriada. No entanto, em diálogo. Um diálogo que parte do confrontamento. Que sublinha as diferenças. Relação/solidão. Ser humano/produto. Sujeito/objeto. Registro/ação. Achei que o embate entre o registro e a ação, por sublinhar as diferenças, em vez de justificar ou demonstrar, potencializaria a ação proposta.

(Night Sea Crossing -1980)

(Imponderabilia-1977)

Há ainda uma outra relação a fazer, nessa idéia de criação intertextual que levantei no início deste relatório. Refere-se a outra ação artística que se relaciona indiretamente com a ação performática em questão. No decorrer do semestre, iniciei um projeto de uma série de performances em parceria com Aline Vargas, tratando a questão do sujeito como objeto, do ser como mercadoria. Da série projetada, até o momento, apenas uma ação foi realizada, no open space performático proposto pela Tania Alice para o lançamento do seu livro na Livraria da Travessa do Ouvidor. Enquanto eu falava meus poemas, Aline ia escrevendo pelo meu corpo versos, palavras, fragmentos do que ia ouvindo. Com o corpo já quase todo preenchido por palavras, Aline me colocou dentro de um carrinho de compras, e desenhou na minha testa um código de barras. Então seguiu pelos corredores da livraria empurrando o carrinho e escolhendo livros, que ia pondo dentro do carrinho junto comigo. Eu tornada livro, objeto, produto vendável, mercadoria, a partir de uma coisa tão subjetiva e imaterial como a poesia. Nesta performance, substituiu-se o objeto (livro) pela pessoa. Na minha performance a partir da “Imponderabilia”, fez-se o caminho inverso: a substituição da pessoa pelo objeto (boneco). Num, o código de barras; noutro, a etiqueta com o preço. O diálogo, então, se dá (pelo menos) em dois níveis, com a performance da Marina Abramovic, e ainda com esta outra performance realizada por mim e pela Aline. E há ainda uma série de outras possibilidades de associação a serem realizadas livremente pelos espectadores/participadores da performance. Para alguém, a ação pode sugerir, por exemplo, uma afirmação feminista. Para outros, pode suscitar questões sobre sexualidade. Ou ainda uma série de outras que eu não posso prever. E nenhuma estará errada, porque a obra performática também é constituída a partir do espectador/participador. E esta, em especial, que propõe um contato físico forçado com um corpo humano nu e um boneco de borracha, tem na sensibilidade do espectador sua principal potência de criação de sentido.



Ao realizar a performance, observei que a etiqueta com o preço não fez muita diferença, creio que a maioria das pessoas não prestou atenção nesse detalhe. Também não pude observar se as pessoas prestaram atenção ao vídeo da performance original que estava sendo reproduzido no laptop dentro da sala. Mas a relação entre ser humano e objeto ficou muito clara, porque o boneco pendurado na porta podia ser deslocado, e muitas pessoas desobstruíram a passagem empurrando o boneco para o lado, algumas com cuidado, outras de qualquer jeito (coisa que certamente não fariam com um ser humano). Outras buscaram formas “alternativas” de passar, já que o pênis de borracha ficava ereto, encostando na minha barriga - algumas pessoas passaram por baixo. Poucas encostaram de fato em mim, também porque ao passarem o boneco sofria um pequeno deslocamento e liberava espaço. Houve certa movimentação no corredor do andar, e depois soube que algumas pessoas que teriam aula na sala ao lado cogitaram a possibilidade de entrar, mas não ousaram. Soube também que o funcionário do Departamento, que acompanhou desde o início a montagem da performance (ele me viu testando mil formas de pendurar o boneco antes), disse para a Tania Alice que queria ler o livro dela pra ver se “entendia esse negócio de performance”, e chegou a perguntar pra mais alguém se “tem que ficar nu?”.


Para mim, o mais interessante são os diversos desdobramentos. A performance se iniciou, de fato, quando resolvi que iria comprar um boneco inflável para usar na performance no site de um sex shop virtual, pois iria usar o cartão de crédito da minha mãe, e preenchi o pedido de compra com os dados dela. O cartão não entrou e acabei fazendo a compra com boleto bancário. O sex shop, então, enviou um e-mail para ela, porque ela não havia finalizado a compra, informando que as embalagens eram “super discretas”, e na seqüência ela começou a receber uma série de e-mails com propaganda de produtos, e ficou impressionada, comentando “tem umas coisas que eu nunca vi!”, contou pras amigas etc. O boneco virou atração turística na minha casa, todos que iam lá eram convidados a conhecê-lo.

No dia determinado para a performance, saí de casa levando o boneco nos braços. Entrei com ele no elevador. Ninguém entrou no elevador, mas o porteiro deve ter visto pelo circuito interno de TV. Pus ele no banco do carona do meu carro, e desci a garagem. Enquanto trocava o cartão da garagem, percebi o garagista dando risada. Não pude observar a reação das pessoas no trânsito. Apenas quando estava parada. Um grupo de jovens viu, deu risada e ficou comentando e olhando pra trás (observei pelo retrovisor). Um homem que vinha se aproximando do meu carro no sinal de trânsito para me pedir dinheiro, ao ver, caiu na risada e deu meia volta, depois foi pedir dinheiro para outro carro. Ao chegar na UNIRIO, cruzei o jardim com o boneco nos braços e várias pessoas riram ou fizeram comentários ou simplesmente olharam. Um dos seguranças, quando fui pedir a chave da sala, perguntou se era pra performance e se qualquer um podia assistir, e “que pena” que ele não podia sair dali, “deve ser picante”, comentou. Senti que o boneco desperta a curiosidade das pessoas.

Observei, também, em várias situações, que o boneco é motivo de risada. Eu mesma ri muito quando comprei, quando o tirei da embalagem, ri da boca aberta e daquela cara de assustado, dos pêlos pintados no peito, e fiz uma série de piadas. Achava que talvez, no momento de realização da performance, cara-a-cara com ele, as pessoas fossem dar risada, e me preocupava em segurar o riso e manter a seriedade do trabalho. Na hora, não tive vontade de rir. E não ouvi nenhuma gargalhada. Na hora, foi muito difícil permanecer encarando aqueles olhos de borracha, sem expressão e sem vida. Ter naqueles olhos mortos a parceria de trabalho. E acredito que talvez a seriedade, e até uma certa tristeza que me tomou, foram determinantes pra que a performance não se tornasse paródia ou piada. Senti que a maior exposição ali não era o meu corpo nu, mas algo que se desnudava na minha alma. Tirar a roupa é fácil, difícil é deixar cair a máscara. E eu, com toda a minha máscara de auto-suficiência, eu preciso muito do outro, como uma criança perdida. Eu precisei muito, naquele momento, de olhos vivos, e os que eu tinha eram os de borracha.

Talvez por isso tenha me interessado mais em passear com o boneco - é mais divertido. As pessoas riem, se aproximam, conversam comigo. Eu não fico sozinha. Achei tão interessante a simples reação das pessoas à presença de um boneco inflável que, ao final da aula, voltei a circular pelo jardim da UNIRIO com o boneco nos braços, tomei um café na cantina, fui ver outra performance, conversei com as pessoas, e não houve quem não comentasse. No elevador, um rapaz quis ver como era dentro da boca, e enfiou os dedos e ficou mexendo e depois comentou “interessante”. Duas amigas comentaram que era “a minha cara” andar com um boneco inflável por aí. Algumas pessoas me perguntaram se eu já o tinha usado, ao que eu respondi “ainda não”. Outras perguntaram o preço, comentaram de como ele era feio, da boca rosa, dos pêlos pintados no peito, do design do vibrador etc. Muitos queriam saber o que eu ia fazer/tinha feito com aquilo. Muitas pessoas vieram falar comigo por causa do boneco, por curiosidade. Dois caras que vinham do prédio de música estavam comentando, ao passar por mim, que souberam que tinha uma menina que ficou pelada lá em cima com “esse negócio aí”. Acho que na UNIRIO as pessoas se sentem mais à vontade de vir comentar comigo, ou de pedir pra tocar no boneco ou ver como é. Ainda pretendo realizar outro desdobramento desta performance com o boneco na rua, andar mais com ele no carro, parar no posto de combustível pra reabastecer, comprar coisas dos ambulantes nos sinais de trânsito etc.

“As discussões mais recentes sobre as adaptações cinematográficas de romances passaram de um discurso moralista sobre fidelidade ou traição para um discurso menos valorativo sobre intertextualidade. As adaptações localizam-se, por definição, em meio ao contínuo turbilhão de transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de reciclagem, transformação e transmutação, sem um claro ponto de origem.” (STAM, p. 234)

Quis finalizar com essas palavras de Robert Stam sobre adaptação cinematográfica, porque acredito que elas podem ser transpostas tranqüilamente para o discurso sobre reconstituição performática. Eu não “reconstituí” a performance “Imponderabilia”. O que realizei foi uma “transformação intertextual”. E isso me isenta de qualquer discurso moralista sobre fidelidade ou traição em relação à obra original. E ainda me dá infinitas possibilidades de ações performáticas a partir desta, de textos gerando outros textos...

Bibliografia:

BOURRIAUD, Nicolas. “Estética relacional”. São Paulo: Martins, 2009.
CYPRIANO, Fabio. “Performance e reencenação: uma análise de Seven Easy Pieces de Marina Abramovic”.
KIHM, Cristophe. “La performance à l´ère de son re-enactment”. In Art Press nº 7. “Performances contemporaines”.
LEHMANN, Hans-Thiess. “O teatro pós-dramático”. São Paulo: Cosac&Naify, 2007.
MEDEIROS, Maria Beatriz de. “Performance artística e espaços de fogo cruzado”.
MELIM, Regina. “Performance nas artes visuais”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
STAM, Robert. “Introdução à teoria do cinema”. Campinas: Papirus, 2003.



Fotos de Vanessa Reis

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