domingo, 13 de junho de 2010

Re-enactment Cut Piece por Flaviane Penafort









O re-enactment do Cut Piece da Yoko Ono foi minha primeira opção desde o momento que tive conhecimento da disciplina ATAT (Análise de Temas e Autores Teatrais) e a proposta da Profª Tânia Alice do re-enactment de performances históricas marcantes. A princípio a possibilidade do re-enatcment do Cut Piece me atraia pelo fato de não ter que interagir diretamente com o público, equivocadamente é claro, e por achar louvável as intenções da Yoko Ono quando o realizou, da primeira vez em 1964 em Tokyo a performance Cut Piece tendo a esperança pela paz mundial como leitmotiv,e a última apresentação em 18 de setembro de 2003 em Paris. Em entrevista Yoko disse que quando fez em 1964 estava com raiva em seu coração, e em 2003 ela se sentia mais vulnerável como se um delicado vento lhe pudesse trazer lágrimas, “(...) Cut Piece é minha esperança pela paz mundial.” Em dois períodos distintos e com contextos bem análogos, em 1964 Segunda Guerrra Mundial e 2003 um pós 11 de setembro de 2001-com posicionamentos políticos de guerra -, Yoko se utilizou da performance para mostrar seu posicionamento diante destes acontecimentos, meio de expressão artística usada para demonstração e execução da arte conceitual, e como uma maneira de dar vida a idéias formais e conceituais na década de 1970, como nos é bem explicitado na citação de RoseLee Goldberg: “Naquela época , a arte conceitual - que insistia numa arte em que as idéias fossem mais importantes do que o produto e numa arte que não pudesse ser comprada ou vendida – estava em seu apogeu , e a performance era frequentemente uma demonstração ou uma execução dessas idéias.” RoseLee Goldberg: A Arte da Performance, do Futurismo ao Presente.(2006,VII)
Os questionamentos que me fazia ao optar pelo Cut Piece eram inúmeros, o primeiro e principal foi o que é uma performance, como seria performar, qual retorno pessoal eu teria, como este re-enactment seria recebido no contexto social em que vivemos, violento, desumano e individualista. Problematizei várias questões, como; em qual local seria realizado, como seria recebido e entendido pelo público, e minha reação diante situações que eu poderia vir a viver, como a mutilação de alguma parte do meu corpo, a orelha, por exemplo, ou meu cabelo cortado e mesmo o desnudamento, situação que para mim não sendo uma atriz ou performer seria muito constrangedora, enfim todas estas questões e mais algumas me angustiaram por boa parte deste semestre. No entanto, mesmo com todas estas dificuldades que eu me apresentava não consegui encontrar outra performance que me atraísse tanto, o ato humanitário da Yoko e sua doação absoluta, o desafio de fazer algo que para mim seria tão difícil por bloqueios pessoais, me instigavam cada vez mais. Fui assisti assim que estreou o documentário “Os EUA x John Lennon”, o qual me ajudou a conhecer um pouco mais sobre o trabalho humanitário de Yoko e entender mais o Cut Piece, decidi que realmente o faria, não sabia ainda como, com todos os meus temores, mas faria.
O que é uma performance? Seria algo acontecendo num espaço/tempo, o performer como objeto de uma ação, gosto da definição do Lehmann, para a performance:“... a performance é aquilo anunciado por aqueles que apresentam.” Lehmann, H.T., “ O teatro pós-dramatico, 227. Entendido isto, pude começar a refletir melhor como seria o re-enactment do Cut Piece, eu seria um objeto de uma ação, conclusão que me deixou mais confortável, momentaneamente. Para minha felicidade minhas colegas de classe Vanessa Reis e Tatiane Santoro, que já haviam feito o re-enactment do Cut Piece, resolveram faze -lo novamente e me chamaram para fazer com elas, o que para mim foi muito animador, já que teria companhia o medo diminuía um pouco. Tive a princípio a preocupação dos motivos delas para o re-enactment, visto que havia tomado conhecimento do primeiro que realizaram, e não compartilhava de suas razões, e sendo então as mesmas, não poderia realizá-lo com elas. “O contexto - que com freqüência implica num procedimento convencional – é determinante para o êxito, a felicidade dos atos performativos. Também determinantes são a intenção e a sinceridade daquele que os pronuncia.” Ana Bernstein: Atos da Fala, Folhetim.20. (2004, 61).
Conversamos e pude perceber que seus pensamentos em relação ao Cut Piece haviam mudado, e que agora parecíamos comungar dos mesmos princípios. O local escolhido para o re-enactment foi o IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais na UFRJ), por ser um ambiente universitário e um espaço público, ou mesmo por proteção, de não estar em um espaço publico aberto a todos os tipos de pessoas, como uma praça. Fomos em uma terça-feira, 08/06/2010, de manhã. Fui aflita sem saber como eu reagiria se conseguiria realizar o re-enactment, e se conseguisse qual seria minha reação diante a reação das pessoas. Tudo era muito novo para mim, eu sabia o significado do re-enactemnt para mim, mas e o público, o que acharia, como reagiria, e esta reação como se reverteria para mim? Combinamos de não ir de preto para evitar estereotipar a ação, mas casualmente acabamos estando todas de camisa preta. Começamos o re-enactment por volta da 10 horas da manhã. Estava muito tensa e com frio, mas com o passar do tempo o tremor que sentia, passou a ser de angústia, teve um momento que pensei que a carne do meu rosto ia se soltar, de tanto que pulava. Os minutos se passavam, as pessoas passavam, umas olhavam e continuavam a fazer o que estavam fazendo, outras acho que a maioria, nos ignorava literalmente. E nós ali, depois de 20 minutos,calculo, estava desesperada, entrei em uma enorme crise de sofrimento, de alguém que precisa de atenção, de socorro. Sempre me sensibilizo muito ao ver crianças de rua, dói em mim vê-las e não saber o que fazer, ou mesmo por comodismo não fazer nada. E nesta manhã de certa forma me senti um pouco no lugar delas, talvez seja egoísmo meu querer comparar o meu sofrimento com o delas, mais eu estava ali sentada, com frio, medo e dores que tomavam o meu corpo, e nada acontecia, ninguém se aproximava, acho que senti um pouco da angústia de quem quer desesperadamente atenção, não me comparo em relação ao sofrimento físico, mas talvez o psicológico, foi uma sensação muito ruim. Pensava como poderia acontecer a performance sem a ação? E não conseguia perceber que a ação estava acontecendo o tempo todo, nos estávamos ali, como objetos da performance, e assim literalmente fomos tratadas pela maioria, como mais um objeto da arquitetura local. Uma, duas, três, quatro pessoas se aproximaram, perguntaram se podíamos falar, se era para interagir, mas pouquíssimas entenderam que era para cortar um pedaço, na verdade nem isso, cortavam sem tirar pedaços. Uma delas, um homem, se demorou mais, e sendo ali um Instituto de filosofia começou a filosofar e a querer interagir conosco. Indagou se éramos de uma companhia de dança, Talvez por estarmos de preto, sei lá, se estávamos fazendo um manifesto humanitário entre inúmeros outros questionamentos, e citou as “pessoas invisíveis”, pessoas que vemos todos os dias, passamos por elas e não as enxergamos, deu como exemplo os zeladores do Instituto, que ele comparou com a mobília do Instituto, pois eram assim que a maioria os tratavam, com indiferença, como se não existissem. A política contemporânea é a responsável por diminuir as esferas de relação, as pessoas atualmente andam muito ensimesmadas, mecanizadas e chegam a tal egoísmo, ou medo talvez de se relacionar, que não conseguem sequer ver ao próximo com humanidade, e foi isso que pude vivenciar ali naquela manhã, acho que minhas colegas também.
“O contexto social restringe as possibilidades de relações humanas e, ao mesmo tempo, cria espaços para tal fim. Os banheiros públicos foram criados para que as ruas ficassem limpas: é com esse mesmo espírito que se desenvolvem as ferramentas de comunicação, enquanto as ruas das cidades ficam limpas de qualquer escoria relacional e as relações de vizinhança se empobrecem. A mecanização geral das funções sociais reduz progressivamente o espaço relacional.” Nicolas Bourriaud: Estética Relacional, 23.
Meu medo inicial era de ser machucada ou me despirem, e no meio do processo estava eu ali quase que implorando por qualquer atenção mesmo que uma agressão. Para talvez amenizar meu sofrimento acabar logo com aquele processo para mim estava sendo tão angustiante. Minha aflição era tanta que em um certo momento que pessoas nos rodeavam se perguntando o que eram para fazer, num ímpeto desesperado, levantei-me e cortei um pedaço da manga da blusa da Tatiane, a fim de lhes mostra a nossa intenção, em vão. Quase uma hora e meia se passou quando me dei conta que o re-enactement para mim já havia acontecido. Eu estava ali como performer-objeto, e estava provocando naquelas pessoas repulsão, inquietação de alguns que ali estavam quando começamos e permaneceram, e ao mesmo tempo eu estava também me provocando, me questionando sobre todos aqueles sentimentos que me afligiam, havia sim uma comunicação, silenciosa porém. “...vida silenciosa... formada pelas relações com o outros.” Nicolas Bourriaud: Estética Relacional, 24.
Fui naquela manhã objetivada a realizar o re-enactement do Cut Piece, não sabia como iria acontecer, mais no final o resultado, que foi completamente diferente das possibilidades que eu havia imaginado, para mim foi muito compensador e satisfatório. Pois acho que a comunicação que tive, foi além das outras pessoas presentes, foi de “mim para mim”. “O posicionamento performativo não se pauta por critérios prévios, mas por seu êxito na comunicação”. H.T. Lehmann: O Teatro Pós-Dramático, 227. Somente agora depois de ter feito o re-enactment entendo a explanação de Lehmann sobre a “autotransformação” do artista,; “...na arte performática a ação do artista está menos voltada ao propósito de transformar uma realidade que se encontra fora dele e transmiti-la com base em uma elaboração estética aspirando antes uma “autotransformação”. O artista performático... organiza e realiza ações que afetam o próprio corpo.” H.T. Lehmann: O Teatro Pós-Dramático, 228 ... não tinha noção de como seria tão intensa em mim, quando terminei a performance percebi que realmente houve em mim uma transformação. Fui para o re-enactment sabendo que meu posicionamento em refazer o Cut Piece não alcançaria o propósito da Yoko, mas fui com este pensamento humanitário para mim, tendo noção que provocaria reações nas pessoas, mais principalmente querendo saber qual retorno eu teria desta experiência, e garanto que performar foi uma experiência muito relevante, apesar de angustiante, e com certeza aguçou em mim outros questionamentos sobre o universo da performance.


2 comentários:

  1. Realmente interessantíssimo. Desviando o foco da leitura técnica, literária e voltando mais para a reflexão que FLAVIANE PENAFORT nos confronta, é possível reviver as mesmas sensações e angústias vividas por ela. A narrativa dos acontecimentos, desde a preparação até a conclusão da performace, coloca-nos sentados em uma daquelas banquetas vivendo realmente aquela situação conflituosa.
    Agora fica-nos a reflexão de expectadores, não visuais mais de sentimentos comungados.

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  2. Excelente trabalho que mostra o quanto os paradigmas de representaçao (com os valores associados de resultados esperados, etc.) caiem por água abaixo na experimentaçao artística "real" (mas o que é "real"?). Experiencar a sensaçao de invisibilidade nao fazia parte do próposito inicial e acabou desencadeando uma experimentaçao riquissima em possibilidades de afetar e ser afetado.

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