segunda-feira, 14 de junho de 2010

Laranja
por
Laranja



“não se pode entrar duas vezes no mesmo rio,
pois ele já não será o mesmo, nem você”
Heráclito.




Re-enactment da performance Laranja do artista DUCHA realizado no Rio de Janeiro (2000) São Paulo e Recife.


No fluxo da atividade artística contemporânea vemos a produção da performance sob constante investigação crítica de conceito, crescente documentação, diferentes formas de registros e no centro de grande discussão, problematizando, inclusive, o mercado da arte.
Marina Abramovic, uma das artistas com maior visibilidade da arte contemporânea, realiza performance desde os anos 70 e com alguma frequencia estabelece códigos, sistematiza regras dinamizando o conceito de performance. Considerando-a uma artista em constante atividade e reflexão, é natural constatar que nos últimos anos ela contrariou suas próprias e antigas regras – “sem ensaio, sem repetição, sem final previsto” – ao estabelecer medidas para a recriação de performance.
Em 2001 com A litle bit of History Repeated, proposto pelo curador Jeans Hoffmann, e depois, em 2005 com Seven Easy Piece de Abramovic, a arte da performance parece ter se colocado numa nova reflexão sobre si mesma, o da re-encenação, ou da reconstituição, ao expor trabalhos onde um artista recriava a performance de outro artista. Jeans Hoffmann convidou 10 artistas (dentre elas a brasileira Laura Lima) para cada um recriar performances históricas, mais tarde, Abramovic realiza uma “ação” que permitiu uma leitura crítica entre as duas ações (curador x artista) independente de ser esta a intenção ou não, o fato é que Abramovic recriou 7 trabalhos de artistas diferentes estabelecendo regras para a recriação – peça permissão ao artista, pague o artista pelos direitos autorais, realize uma nova interpretação da peça, exiba o material original: fotografias, vídeos e objetos; exiba a nova interpretação da peça – e problematizando os, já tão variados, conceitos de performance.

Sob tal problemática escolho recriar o trabalho Laranja para tentar refletir sobre a mesma e outras questões.

Há 10 anos atrás, num cruzamento do trânsito do centro do Rio de Janeiro, sendo mais precisa, onde a Rua Buenos Aires encontra a Av. Rio Branco o artista Ducha inaugurou como espaço de arte, a ESQUINA e ali levou dois trabalhos, A Cama, onde um casal está deitado numa cama, com travesseiros e lençóis, devidamente adequada para o sono se não fosse a fila de carros que aguardava o sinal verde e o movimento de pedestres apressados que tentavam então desviar daquele objeto deslocado, e Laranja, um pedestre carregando um grande saco de papel cheio de laranjas, aguarda para atravessar a Av. Rio Branco, quando seu sinal abre, ele se adianta junto com a multidão habitual desses momentos, porém no meio da travessia rasga o fundo do saco e uma centena de laranjas rolam na avenida. Nos anos posteriores, outros artistas, como Ricardo Basbaum, Bob N, Jarbas Lopes, fizeram seus trabalhos na ESQUINA inaugurada por Ducha.
Daí em diante, a cidade adquiriu potencial poético sob meu olhar (devo explicar aqui que fui a mulher do casal na cama, onde deitei com o meu marido e o mesmo carregou o saco de laranjas em 2000) e não posso negar que a reconstituição de Laranja agora por mim (2010), habita um espaço de memória, mas também de imaginário e reflexão, na medida que reconheço nessa obra potenciais do acontecimento num curto espaço e tempo de convívio inesperado entre artista e o outro.

Mesmo crendo que a performance corre o risco de uma espécie de museificação a partir das regras proposta por Abramovic, concordo com sua preocupação ética e não poderia re-fazer Laranja
sem a autorização do artista, além do que acredito que o diálogo que se estabelece entre os dois artistas deve ser potente à realização do próprio trabalho, e assim foi.

Laranja ocupa lugar na teoria da Estética Relacional, que segundo seu criador, o curador Nicolas Bourriaud faz parte de forte interesse da arte contemporânea, onde o jogo se desenvolve em função de noções interativas, convivais e relacionais.

“Criações ou explorações de esquemas relacionais, essas obras constituem microterritórios relacionais intermediados por superfícies-objetos” Bourriaud, Nicolas in. Estética Relacional.

“(...) atuam num campo que pode ser chamado de esfera relacional, que é para a arte de hoje aquilo que a produção em massa foi para a pop art e a arte minimalista” idem


No espaço urbano dos grandes centros, querendo ou não, obedece-se às regras de convívio já institucionalizadas, que regem o comportamento humano. Os sinais vermelho alternam-se, ora parando os carros ora parando os pedestres, dando um movimento ritmado ao fluxo da cidade, e instaurando um prévio acordo entre estas duas instâncias funcionalizadas (motoristas e pedestres)

No trabalho de Ducha as laranjas (superfícies-objetos) caem e rolam pela faixa de pedestre nesse intervalo dos sinais, causando reações diversas (alguns pegam as laranjas para si, outros pegam e devolvem ao artista, outros tropeçam, desviam, xingam, riem, se assustam, gritam, param, etc)
Não se trata aqui de interatividade como artifício, prática já tão explorada por diversos campos das artes, e sim de considerá-la como ponto de partida e de chegada da obra, a ação investe na relação já tão mecanizada entre quem dirige o automóvel e quem caminha, a medida que constrói o inesperado como um espaço de vivência comum.
Laranja constituí-se, justamente, no espaço relacional aberto pelo artista, porém preenchido pela convivência, pelo jogo inter-humano do encontro inesperado construído, fazendo aparecer novas possibilidades de troca além das vigentes no sistema urbano.

Ainda sobre a experiência da reconstituição de Laranja, não posso deixar de dizer sobre o registro da obra, pois além de ser estritamente ligada a discussão sobre performance, em minhas prévias conversas com o artista sobre o trabalho ele me apontou a premissa sobre o registro – a câmera deveria ser posicionada em cima de um prédio, lugar onde ninguém pudesse perceber sua presença e assim não correr o risco de macular a esfera relacional ambicionada, como havia sido feito originalmente. E assim foi feito também nessa reconstituição.
Além do cuidado com a invisibilidade da câmera, a posição em distância (19o andar de um prédio da ESQUINA) num ângulo de quase 90o graus transfere ao registro outros sentidos, a imagem afirma-se poeticamente, e no entanto tem potencia autônoma do trabalho ao vivo.

O ângulo de registro escolhido pelo artista, dá uma visão cartográfica do quadro, e sob a sinalização pintada de branco no asfalto preto se justapõe, repentinamente, bolas de cor laranja causando uma composição de primazia plástica clara.

Luiz Claudio da Costa trata a questão do registro na arte contemporânea com grande interesse e faz um farto levantamento dessas obras, posicionando-as no mercado da vídeo arte enquanto relaciona-as com as performances que lhe deram origem e seus autores.
“(...) a arte de performances e intervenções praticadas em espaços institucionais ou em outros ambientes do mundo pode ser exposta em suportes digitais, ou seja, possui força e autonomia suficientes, uma vez que comporta sentidos, naturezas, interesses e formalizações diversos daqueles evidenciados pelo trabalho exibido ao vivo.” Luiz Claudio da Costa. Dispositivo de Registro na Arte Contemporânea


No registro o artista ganha um maior domínio sob a forma, coisa que não se tem domínio por inteiro no campo da esfera relacional. O registro dá a performance um caráter de objeto, cujo autor dá a forma que lhe convir, podendo fazer do registro então uma nova obra, desdobrando-o em novos sentidos.
Após a realização da performance, vendo a imagem de registro, foi ainda possível aproximar o trabalho Laranja da técnica dos Viewpoints, de improvisação performática para o teatro, criado pela diretora americana Anne Bogard, onde se faz uso das relações de contorno ou contorno de corpos no espaço, a forma do corpo, por si só, em relação a outros órgãos, ou em relação à arquitetura, linhas, curvas, ângulos, arcos, todos parados ou em movimento, e ainda das relações de tempo e duração. Tal percepção afirma a posição do artista enquanto gerador de relações interativas, porém sob a ação de outros corpos, formas e ritmos.

E foi assim, sob ação de outros corpos que me senti durante os segundos de travessia da Av. Rio Branco, antes e depois do escoamentos das laranjas, além de haver também um inegável interesse em perceber nos outros a circunstancia dada.
É verdade que me adiantei na travessia em relação ao original Laranja (a travessia original se deu quase no momento que o sinal do pedestre se fecha, enquanto ele pisca o vermelho), porém e talvez por isso, saí de um lado da rua com um saco de papel com 80 laranjas (foi o que consegui carregar) e cheguei ao outro lado da rua com um saco de plástico com quase 70 (um pedestre esvaziou rapidamente sua grande sacola plástica e me deu, me ajudando a resgatar as laranjas) várias pessoas se abaixaram para apanhar as laranjas que ainda estavam em movimento, enquanto alguns motoristas riam incrédulos sob gritos e piadas circunstancias, quando pus os pés na calçada oposta fui avisada de outras laranjas que colocaram num canteiro para mim e, o Ducha que me disse assim : “Foi completamente diferente, que dá outra vez”

Um comentário:

  1. Trabalho muio interessante na medida em que estabelece um diálogo com o próprio artista que realizou a performance inicial. Como o próprio artista vê um re-enactment no qual ele nao esta de corpo presente? Interessante o deslocamento para a questao do registro, colocado pelo próprio artista como condiçao para o re-enactment. Interessante também o diálogo estabelecido com os textos do Bourriaud et do Claudio da Costa. E o inesperado,o nao calculado, sempre, a cada instante.

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