segunda-feira, 31 de maio de 2010
Flávio de Carvalho
No fim dos anos 30, o fluminense Flávio de Carvalho (1899-1973), que desde a Semana de Arte Moderna de 1922 morava em São Paulo, circulava pela cidade com uns desenhos debaixo do braço. À menor possibilidade de uma conversa mais duradoura, tratava logo de desenrolar os papéis e mostrava orgulhoso o que tinha certeza que se tornaria em breve uma invenção revolucionária: uma veneziana baratíssima, que ele projetara para ser vendida nas favelas brasileiras. Embriagado pelo engenho de sua recente criação, o artista provavelmente nem percebia as reações nada favoráveis à sua ideia que, claro, provou-se um fiasco pouco tempo depois. Flávio se esquecera de um pequeno - porém definitivo - detalhe: naquela época, nem janelas havia nas precárias moradias dos morros, quanto mais cortinas. O deslize, digamos assim, nem de longe acanhou o artista. Ele nunca hesitava em colocar em prática o que passava em sua cabeça. Por pura curiosidade, por puro prazer ou por acreditar mesmo. Nem tudo dava certo e por isso é tão difícil dimensionar sua importância na história da arte.
Flávio de Carvalho divide-se entre o personagem de deliciosas anedotas da São Paulo das décadas de 1930, 1940 e 1950, e o grande artista, autor de retratos e nus femininos que figuram entre as melhores obras de arte de seu tempo. Ao lado dessas duas facetas, aparentemente antagônicas, existem ainda muitas outras porque, de fato, ele fez de tudo um pouco na vida: de projetos de arquitetura a ensaios sobre moda, de cenários para teatro a pinturas, de criações de design a performances, desafiando a todo instante os teóricos até então bastante afeitos a classificações. Mergulhar em seu universo, mesmo hoje, quando as fronteiras entre as diversas manifestações culturais encontram-se tão diluídas, exige que se abandonem preconceitos. Flávio explorou tantas linguagens que ele escapa de um entendimento por completo. A retrospectiva em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo, no parque do Ibirapuera - somada à próxima edição da Bienal de São Paulo, que traz justamente Flávio de Carvalho como um nome-chave no elenco - pode ser uma oportunidade nesse sentido. Com cerca de 60 obras, além de 30 outros itens, como fotos e documentos, a exposição no MAM-SP tem curadoria de Rui Moreira Leite, autor do livro Flávio de Carvalho: O Artista Total (Editora Senac, 192 págs.). Leite optou por uma seleção enxuta, o que evita justamente a exaltação da pluralidade da produção do artista, algo que, do jeito como vem sendo feito até agora, prejudicou seu reconhecimento.
Não que ele ligasse muito para isso. Flávio era exibido. E ousado. E debochado. É preciso ter isso em mente para compreender melhor sua Experiência nº 2, por exemplo, realizada em uma tarde de junho de 1931, durante uma procissão de Corpus Christi que tomava a rua Direita, no centro da capital paulistana (leia texto com o relato do artista e cineasta mineiro Cao Guimarães, que refez o gesto especialmente para a BRAVO!). Vendo aquela quantidade de fiéis juntos, ele correu para casa, pegou um boné verde e saiu andando no sentido contrário ao da multidão, com o chapéu na cabeça, em um sinal de total desrespeito ao ato religioso. Não satisfeito, ainda mexeu com as filhas de Maria. Só não foi linchado pela multidão em fúria porque conseguiu se refugiar em uma leiteria na rua São Bento, onde a polícia deu-lhe proteção. Da atitude, escreveu um livro em que analisou o comportamento das massas com base em referências da psicanálise e da antropologia, e fez uma série de desenhos, que integram a exposição no MAM-SP, em que explorou o jogo do preto-e-branco para enfatizar a ira despertada nos católicos.
"POR QUE NÃO?"
Bem mais tarde, em 1956, Flávio voltou ao centro de São Paulo com sua Experiência nº 3. Na época, ele assinava uma coluna no jornal Diário de São Paulo, intitulada A Moda e o Novo Homem (os artigos acabam de sair em livro, pela Editora Azougue, 303 págs, R$ 42). Nela, o artista defendia associações no mínimo interessantes. Escreveu que os colarinhos altos começaram a ser usados pouco antes da Revolução Francesa e que, portanto, os castigos na guilhotina teriam influência das roupas do período. Ou ainda que os colares e pulseiras seriam reminiscências das correntes dos escravos. Quando o jornal pediu-lhe para desenhar uma indumentária masculina, Flávio não se contentou em mostrar o croqui. Resolveu promovê-lo pela cidade. Para ele, o homem do momento era alguém que sentia calor - portanto, uma vestimenta adequada incluiria uma saia. Talvez para um certo desgosto do artista, no entanto, mais de vinte anos depois de sua primeira experiência São Paulo tinha uma mentalidade mais avançada. As pessoas riram dele, mas a reação não passou disso - e o episódio entrou para seu vasto anedotário, embora tenha influenciado a moda de outras formas.
Grande parte de seus projetos de arquitetura também não foi para frente. Só dois acabaram realizados, e ambos estão presentes na exposição por meio de maquetes e fotos: em 1936, construiu-se o conjunto de 17 casas na esquina das alamedas Lorena e Ministro Rocha Azevedo, em São Paulo (apenas uma delas continua em pé hoje, mas muito modificada de seu desenho original); e, dois anos depois, sua fazenda Capuava, em Valinhos, atual patrimônio da família. Mesmo assim, os amigos caçoavam que as casas eram "frias no inverno, quentes no verão". Ainda nessa linha de lendas em torno de Flávio, colegas contavam que, do dia para a noite, o artista que não recusava um bom bife acompanhado de uma generosa dose de uísque anunciou-se vegetariano e passou a comer só coisas verdes e a beber limonada. Muito provavelmente, se alguém na época tivesse questionado a razão, ele responderia com outra pergunta: "Por que não?" Era assim que encarava o mundo. E isso incluía naturalmente a arte.
Cor e expressão
Para o bem da arte, seu espírito inventivo e irrequieto deixou pinturas capazes de fazer calar qualquer roda social empenhada em apenas se divertir às custas de sua figura singular. O ponto alto de seu legado nas telas centra-se na forma como explorava as cores, com forte herança do expressionismo alemão, a ponto de desdenhar os pintores monocromáticos: "São indivíduos dogmatizados dentro de um claustro e condenados ao cinzento da eternidade", escreveu certa vez. Sem riscar esboços, Flávio trabalhava diretamente na tela e começava cada peça de um jeito, sempre em busca de captar algo além da aparência do modelo. O escritor Mário de Andrade (1893-1945) foi um dos que reconheceu essa sua capacidade: "Quando defronto o retrato feito pelo Flávio, sinto-me assustado, pois nele vejo o lado tenebroso da minha pessoa, o lado que eu escondo dos outros", comentou o modernista sobre a obra presente na seleção do MAM-SP.
Outro momento importante de sua carreira nessa área está em sua Série Trágica, que infelizmente ficou de fora da seleção do curador Rui Moreira Leite e que pertence ao Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, o MAC-USP. Feitos em 1947, os nove desenhos registram sua mãe à beira do leito de morte. As obras comovem porque nelas, além da técnica, Flávio voltou a ser quase um menino que, diante de uma cena sobre a qual não tinha o menor controle, pôs-se a desenhar.
Mas nem mesmo o maior crítico de arte brasileira de todos os tempos entendeu o artista. Em um texto de maio de 1957, no Jornal do Brasil, Mário Pedrosa escreveu: "Flávio paga aqui o preço de um permanente amadorismo. O seu mal é a pluralidade de seus talentos, que vão desde os literários aos plásticos. O pior é que nenhum deles vive e isso o torna um diletante, um diletante genial em tudo, inclusive no senso de publicidade". Pedrosa falava em defesa do júri da 4ª Bienal de São Paulo, que não incluíra o artista em sua seleção. Pois Pedrosa teve de engolir pouco tempo depois da circulação de seu artigo a visita do diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, a uma mostra paralela à Bienal. De lá, Alfred Barr Jr. saiu com dois desenhos do "diletante" Flávio de Carvalho. Mais: exatos dez anos depois, na 9ª Bienal de São Paulo, Flávio recebeu o prêmio na categoria artista internacional, feito jamais alcançado por outro brasileiro.
ONDE E QUANDO
Flávio de Carvalho. Museu de Arte Moderna de São Paulo (parque do Ibirapuera, portão 3, São Paulo, SP, tel. 0++/11/5085-1300). Até 13/6. De 3ª a dom., das 10h às 18h. R$ 5,50.
Até dia 13 de junho, o Museu de Arte Moderna de São Paulo exibe uma retrospectiva com obras de Flávio de Carvalho. O fluminense que viveu no auge do modernismo no Brasil, aventurava-se em projetos de arquitetura, ensaios sobre moda, cenários para teatro e pinturas, criações de design e performances. Um de seus trabalhos mais ousados foi a denominada Experiência nº2, quando, numa tarde de junho de 1931, durante uma procissão de Corpus Christi, andou no sentido contrário ao da multidão com um boné verde na cabeça, algo que, na época, era considerado um total desrespeito à religião. BRAVO! convidou o artista e cineasta mineiro Cao Guimarães para refazer a experiência de Flávio de Carvalho. Ele percorreu uma procissão em uma sexta-feira da Paixão, na cidade histórica de Mariana, em Minas Gerais. Confira o vídeo e o texto assinados por Cao Guimarães sobre a performance, também registrada em foto por Pedro Motta.
Quando, em 1931, Flávio de Carvalho colocou um boné de veludo verde na cabeça para enfrentar uma procissão de Corpus-Christi em São Paulo, procurava investigar por meio da provocação as possíveis reações da multidão. Nasceu dessa atitude um interessante estudo antropológico e etnológico chamado Experiência nº 2 - Uma Possível Teoria e Uma Experiência (Nau Editora, 152 págs.). Ao ser convidado por BRAVO! para repetir a ação quase 80 anos depois (dessa vez em Mariana, Minas Gerais, e numa sexta-feira da Paixão), vivi uma experiência bem menos radical. O efeito do uso do chapéu sobre a multidão foi nulo, tendo os costumes mudado bastante durante esse período (pude até observar pelo menos mais dez pessoas também vestindo chapéus ou bonés ao longo da cerimônia). Mas, para além dessa primeira proposição, o que mais me impactou nessa experiência foi a vertiginosa sensação de "furar" uma procissão no seu contra-fluxo. Longe de uma tese a esse respeito, o que tirei da oportunidade foi a chance de fazer uma homenagem ao artista.
A procissão começa a se formar na praça entre as duas igrejas. Seus elementos dispersos deslocam-se lentamente na direção de uma pequena ruela. A inicial forma amebóide da massa de gente milagrosamente vai se transformando em uma imensa lagarta. Do alto da ruela ouço a respiração compassada do monstro vindo em minha direção. Penso na entidade Flávio de Carvalho, ponho o chapéu de feltro na cabeça e me preparo para enfrentar a fera.
São oito horas da noite e uma leve chuva começa a cair. Guarda-chuvas e sombrinhas se abrindo como ouriçados pêlos de lagarta. Ela caminha devagar subindo a estreita rua de paralelepípedos. Duas fileiras de gente nas laterais sobre os passeios protegem suas entranhas do tempo e do espaço. No coração desta centopéia que atravessa os séculos vela-se e venera-se um defunto há quase dois milênios.
Penetro-a pela boca, por baixo de seu nariz em forma de cruz. Sinto seu hálito de lavanda pós-banho de freirinhas em êxtase. Sua língua apresuntada me enrola como um pedaço de melão preparando-me para ser espetado pela lança de um soldado de Pilatos.
Avanço solitário e na contramão até a medula da grande minhoca. Anjos começam a me sobrevoar. Deliro! O chão treme perto das artérias que me levam até o coração. Ali jaz o ser adorado. Levam-no morto para que ressuscite. A multidão está de luto. Os cânticos são tristes, as cabeças estão baixas. Anteparos de plástico protegem as velas contra o vento frio de um mundo sem Cristo. Todos estão mortos ("uma procissão em movimento é uma massa de crentes que aspiram se nivelar ao Cristo... exultação narcisista de se ver igual ao Cristo"1).
No contra-fluxo do cortejo de defuntos não me sinto mais vivo que eles. Na caixa toráxica do ser rastejante, estágio larval dos insetos, sinto a condensação da dor dos séculos, ouço o uivo dos lobos da manjedoura, os sinos dos templos de areia de Canaã. Apesar disso não grito, faço cara de sátiro, danço esse silêncio tumular. Um exército de leucócitos de batina me fulmina com o olhar. Apresso o passo na direção da música que vem do aparelho digestivo. Uma bandinha no melhor estilo "interior de Minas" lança jatos de bílis musical gaseificando a atmosfera de certa alegria contida (nos melhores velórios a música prenuncia a ressurreição do defunto). Delicio-me com o corte das fardas azul e branco dos arcanjos instrumentistas e com a "cola" das partituras pregadas no dorso do paletó. Salto por dentro de uma tuba e caio em posição genuflexal na altura da genitália da lepidóptera. A seda episcopal latejante avoluma-se cobrindo a grande manta de carne inerte sobre a pedra. O gozo da fé é silencioso e misteriosamente compartilhado.
Furo a Forma. Defloro-a! Sinto jatos de estalactite massageando-me as costas. Tremores tectônicos desconectam-me os pés. Caio. Fecho os olhos. Petrifico. Passam anos. Abro mares em sonhos. Corro entre paredes de água e acordo na cauda da lagarta.
Na cauda da lagarta reencontro, doce, a realidade. Gente feita de gente. Gente que foi ali pra namorar. Em cada rosto um pote de doce em calda: figo, goiaba, casca de laranja, doce-de-leite, ambrosia, marmelada, baba-de-moça, espera-marido, pecado-de-anjo, quindim. Suspiro fundo e me lanço no escorregador intestinal tornando-me enfim uma espécie de gás liberto no espaço. Um salto no abismo e o chapéu de Carvalho perdido no chão.
1Flávio de Carvalho ("Experiência N2 - uma possível teoria e uma experiência")
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