quinta-feira, 1 de julho de 2010

A Exposição da Carne - Pedro Allonso

Um ambiente lúgubre, um esqueleto de casa (rabiscos nas paredes descascadas indicavam sinais de abandono), uma série de imagens e textos clássicos pendurados no espaço, um corpo nu, uma performance. Exposição em seu sentido máximo! Por ali, havia um laptop onde era exibido uma gravação do performer (este que vos escreve) lendo alguma coisa que era inaudível. Ouvia-se muito pouco do que ele falava, quase nada. Na trajetória para o cômodo mais denso da casa, o visitante deparava-se com um sujeito completamente nu, preso por uma estrutura cujas mãos ficavam atadas para o alto, devidamente imobilizado, disponível aos olhos, aos comentários e à imaginação dos testemunhos ali presentes, degustando vinho ao som de um réquiem. Perto dali, objetos que aludiam à prática sadomasoquista: cinto, corrente com cadeado, chinelo, uma venda preta, velas... mãos , sopro, tortura. Os presentes àquele evento podiam se deslocar livremente pela casa bebendo somente o vinho e ouvir a música que tomava conta do local; ler os fragmentos diversos selecionados de obras de Heiner Müller, Aldous Huxley, Senna Freitas e Julio Ribeiro; contemplar a reprodução de esculturas e pinturas, impressos no papel, de Michelangelo, Agasias e Lucas van den Leyden e também testemunhar a imagem viva do performer em sua nudez, podendo escolher entre assumir a condição de voyeur ou participar daquele ritual, manipulando, açoitando e deixando marcas no corpo do artista. Houve ali um exercício de provocação, uma tentativa de por à prova o comportamento humano diante da perversidade, uma necessidade de trazer à tona pulsões elementares (Deleuze) que habitam zonas obscuras do próprio sujeito, de transportar o outro para o lugar do característico, do primitivo, do violento, selvagem, ritualístico e etc.
O material que serviu como mola propulsora elementar no processo de concretização desta performance fora um trecho selecionado do capítulo 6, extraído do romance A Carne, do paulista Julio Ribeiro, escrito em fins do século XIX, considerado pelos críticos de sua época como um livro obsceno, escandaloso e intensamente pornográfico .
No final deste capítulo, a protagonista do romance, Lenita, descobre que um negro fugido, que fora capturado de uma fuga, sofreria o castigo do bacalhau (chicote de couro cru trançado) pelo capataz da fazenda, à mando do coronel. Tomada pela curiosidade em testemunhar a punição severa, comum aos escravos na época, a moça se esmera em ir até o local do castigo na note anterior sem ser notada, faz um buraco na parede de barro à altura dos olhos, pega no sono ali mesmo e, ao amanhecer, desperta ao ouvir o ruído dos colonos que chegam ao espaço para aplicar a esperada surra. O “urro medonho” do escravo, que tinha sua pele dilacerada pelas correntes que esfolavam as suas costas e nádegas, é descrito na narração com requinte de detalhes, provocando, na doce menina, espasmos de prazer e comoção:
Estava pálida, seus olhos relampejavam, seus membros tremiam. Um sorriso cruel, gelado, arregaçava-lhe os lábios, deixando ver os dentes muito brancos e as gengivas rosadas. O silvar do azorrague, as contrações, os gritos do padecente, os fios sangue que ela via correr, embriagavam-na, dementavam-na, punham-na em frenesi: torcia as mãos, batia os pés em ritmo nervoso. Queria, como as vestais romanas no ludo gladiatório, ter direito de vida e de morte; queria poder fazer prolongar aquele suplício até a exaustão da vítima; queria dar o sinal, pollice verso , para que o executor consumasse a obra. E tremia, agitada por estranha sensação, por dolorosa volúpia. Tinha na boca um saibo de sangue. (A Carne, cap. VI, pag. 52)
A possibilidade concreta de me apropriar do texto literário, e de transformá-lo num evento performático, surgiu no início deste semestre, quando apresentei a idéia de desenvolver um processo de criação dramatúrgica autoral em forma de projeto, para avaliação do chefe do departamento de Teoria do Teatro da UNIRIO Danrlei Freitas, sob orientação da Professora Tania Alice e dos alunos teóricos Dâmaris Grün e Raphael Cassou. Esta atitude artística foi pensada também como resultado prático de minhas pesquisas como bolsista de Iniciação Científica junto ao CNPq, que durante três anos, investiguei metodologias e concepções de encenadores contemporâneos (tratam-se dos paulistas Antunes Filho e Bia Lessa) no ato de retirar a fábula das páginas do livro e processá-las em imagens possíveis no espaço privilegiado do palco.
Entre as múltiplas possibilidades que o trabalho de criação com um texto escrito para ser lido possa oferecer, os meios pensados para estruturar e chegar a um denominador comum oscilou entre muitas incertezas e dúvidas incômodas. O que havia de concreto desde o início era a vontade e a necessidade que me perseguia e que me consumia desde há muito tempo em transformar este romance em presença cênica. E foi no ato de voltar à letra do autor, de retornar as páginas dionisíacas do romance que pude encontrar a imagem ideal e o mote concreto que me daria embasamento para encarar tal empreitada : o contato entre Lenita (mesmo à distância) e o negro flagelado; as convulsões de prazer e êxtase de presenciar o esfolamento da pele já castigada do escravo fugido, as sensações de embriaguês e demência de ver jorrar sangue que escorria pelos fios da chibata. Essa fatia da narração me obrigou a ser posto no lugar do negro e me oferecer às muitas Lenitas que apareceram no espaço da casinha, induzindo-as a que tomassem coragem e assumissem o ato libertador que a protagonista do romance não teve.
Talvez seja este o ponto de partida que nos faça refletir sobre a pulsão elementar, expressão que fora citada por mim no primeiro parágrafo deste texto, extraída do ensaio de Deleuze, conceito este que ajuda a formular, no imaginário, a atmosfera que tentou-se atingir na constituição desta performance. O autor do ensaio Do afeto á imagem: a imagem-pulsão é categórico na descrição para o entendimento do termo, tornando-o reconhecível
Por seu caráter informe: é puro fundo, ou melhor, um sem-fundo feito de matérias não formadas, esboços ou pedaços, atravessado por funções não formais, atos ou dinamismos enérgicos que não remetem nem mesmo a sujeitos constituídos. Nele os personagens se acham como animais: o homem mundano é ave de rapina, o amante é um bode, o pobre, uma hiena. Não que eles tenham a forma ou o comportamento destes, mas seus atos precedem qualquer diferenciação entre o homem e o animal. São bichos humanos. E a pulsão não passa disso: é a energia que se apodera de pedaços no mundo originário (Deleuze, 1983:143-144)
Deslocou-se o meio histórico e geográfico determinado da fazenda, que servia como pano de fundo do romance oitocentista, para o campus do Centro de Letras e Artes da UNIRIO. O escravo castigado tornara-se artista, sujeito e objeto desejoso, o performer que se entregara a uma exposição completa da carne para ser açoitada ou manipulada por quem quer que fosse, quem sentisse vontade de bater ou açoitar. Desejo estético adensado e prolongado durante o tempo que durou o evento, quase uma hora, na tentativa de esgarçar até o máximo do possível, no lócus privilegiado da performance, as paixões, sentimentos e emoções experimentados ou reprimidos por homens em um meio real. A relação só se dava por completo quando os testemunhos, “as ações ou os comportamentos, as pessoas e os objetos” (145) daquele suplício-show ocupassem aquele meio canto sombrio da casa, iluminado somente por velas e pelo flash da câmera de fotografar.


Referência Bibliográfica

DELEUZE, Gilles. Do afeto à ação: a imagem-pulsão. In: Cinema: a imagem movimento. Tradução: Stella Senra. São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1983.

RIBEIRO, Júlio. A Carne. São Paulo: Editora Três, 1972